Maria Homem

Psicanalista e ensaísta, com pós-graduação pela Universidade de Paris 8 e FFLCH/USP. Autora de "Lupa da Alma" e "Coisa de Menina?".

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Maria Homem
Descrição de chapéu Natal

O ideal de uma nova criança

É didático como o ideário moderno está profundamente incrustado em nossas mentes

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Leio numa entrevista a esta Folha, não sem algum espanto, que "essas divas ultrapassadas, Rihanna, Madonna, passaram". A nova geração sou eu e algumas outras influencers.

É didático como o ideário moderno está profundamente incrustado em nossas mentes. Cadê a força da grande matriarca ou o arquétipo do sábio ancião? Já era. Só para o leitor se localizar: Rihanna tem 33 anos e é uma diva ultrapassada. O ideal do novo, do cada vez mais novo, está vencendo de lavada. E é preciso ser livre para destruir o velho e construir o novo. Eu digo e faço o que quiser. E não vem me coibir, não. A novidade e a liberdade: as grandes deusas da modernidade.

Mas como estamos em semana de Natal, voltemos às bases: o cristianismo tem uma função central nesse duplo movimento. Primeiro, quando nos convida a pensar por nossa própria mente, contra a família e contra a sociedade. Jesus disse: larga pai e mãe, filho e filha e me segue. Pensar por si e contra a tradição potencialmente opressora formará o livre-arbítrio, pilar explícito de nossa cultura. Segundo: o cristianismo parte da louvação à criança que nasce. Porque uma criança pode vir a ser algo diferente do que somos. Como está em qualquer cartão de maternidade: eis a esperança do novo. Você é o futuro, meu amor. Você simboliza o novo reino, a nova fé, a boa nova —o messias se repete sem cessar em nossos inconscientes e nossos textos.

Ilustração para coluna da Maria Homem - Luciano Salles

Nasceu uma nova criança, e seja abençoada. Balancem os sinos e tragam presentes. Ela é nossa esperança de realizar o novo, a cada vez. Como está nos cartões da maternidade e nos portões dos templos: a renovação do carisma e da esperança de algo melhor (que essa vida medíocre que de fato levamos).

Passou um milênio e a gente dobrou a aposta. Com o tempo, triplicou. Seguindo a síntese kantiana, vimos o sujeito moderno se identificar com os grandes atributos da Razão, da Liberdade e da Autonomia. Eis as premissas maiúsculas que buscam fundamentar nossos debates, até hoje e em inúmeros campos, como o direito, a política e as psicologias da consciência. A ideia de voto, democracia, arbítrio, intenção (lembra da distinção doloso x culposo?), vacina, sexo —todas reféns da grande tríade.

No entanto, seguindo a rota cruel da história, sobretudo a partir do século 19, estamos experimentando "A Grande Desilusão". Nos demos conta de que somos nós que escrevemos a História e desenvolvemos as ciências humanas justamente para interrogar como estamos fazendo ou somos feitos pelas coisas. Como nos relacionamos com as famosas estruturas. Pesquisamos a "construção social" de tudo, até de conceitos como amor, maternidade, dinheiro, sexualidade, raça, gênero, beleza e tantos outros.

Descobrimos também a ideia de Evolução e, pasmos, entendemos que há também uma paciente e redilhada construção na natureza. Ou seja, na bioquímica, na genética, no diálogo entre macro e microorganismos, entre seres, quarks e (descobri esses dias) excítons. E, "last but not least", nos demos conta também de que somos conduzidos por impulsos e representações inconscientes com muito mais força do que por nossas pobres ideias egóicas. Um "Eu" consciente, racional, livre e autônomo? Jura?

Grandes discursos pela "liberdade", "autonomia", "(minha) verdade" expressam sobretudo nossa submissão à miragem da criança onipotente e nosso desespero diante da crise desses grandes ideais. Embora estejamos esperneando por todos os lados num chilique incrível, sabemos muito bem que não, não somos tão racionais, tão livres, nem tão autônomos quanto gostaríamos. Estamos ancorados, isso sim, na fantasia, na dominação e na dependência, tropeçando de equívoco em equívoco.

De qualquer forma, agradeço a companhia em 2021 e desejo a todos um Natal em harmonia e um Feliz Ano-Novo.

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