Maria Homem

Psicanalista e ensaísta, com pós-graduação pela Universidade de Paris 8 e FFLCH/USP. Autora de "Lupa da Alma" e "Coisa de Menina?".

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Maria Homem

Aconchego

Chegar junto é um caminho para encarar os desafios do novo ano

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Escrevo hoje de uma casa no meio do mato. Um caminho leva ao pequeno portão que dá para a imensidão do mar. Lá adiante, na ponta da praia, um rio e uma vila. Ela tem nome de santo, tipo São Tiago. Faz parte da APA Santo Antônio. Ou seja, estou numa área de proteção ambiental e resguardada por dois santos. A vila pertence a um município também abençoado, agora por uma santa, a Santa Cruz. Coligada por sua vez a uma cidade maior, que traz consigo a miragem de um porto seguro. Ele fica num recôncavo que abriga santos, orixás e resquícios indígenas. O território inteiro é generoso: baía de todos os santos.

Qualquer que seja a escala, eis-me aqui protegida. Um remanso, um respiro.

Ilustração de um ser vivo rosa se balançando em um balanço
Ilustração para coluna da Maria Homem - Luciano Salles

Faço um trabalho com um parceiro negro de olho verde mel. Ele sabe da cruz, do quilombo, do açoite, e dos efeitos de tudo isso nas tragédias das águas e dos homens. Eu começo a pedir perdão. Ele recusa: "Somos todos gente". E me convida para dançar a sua dança. Aceito e me deixo conduzir por mais esse abraço. Remanso, dessa vez do corpo e dos sons: a cultura fazendo sua semeadura.

Cultura que se transmite também nas palavras que não cessamos de trocar, de terror ou de ninar. E se transmite a cada história que contamos em qualquer roda, retecendo a rede simbólica partilhada que ampara cada grupo humano —dos pequenos aos globais. Horas de conversa ou anos de vivência são cifrados em algumas parcas frases que lembramos a cada ritual, a cada encontro.

Na casa no meio do mato também garimpamos as pérolas. "Casa boa é de mainha. Mulher que não me trai e me alimenta". Brincamos com o patriarcado enquanto buscamos ultrapassar o feminino aprisionado no materno. "Por mais que as pessoas digam o contrário, as coisas acontecem muito rápido na Bahia". Essa é a conclusão de uma conversa de quatro horas, onde, imersos na pausa fora da tabela produtiva chamada feriado, nos debatemos com o mistério do tempo.

A cumplicidade da linguagem —ainda mais a íntima— nos ampara. E assim construímos as sínteses poéticas do cotidiano, pequenos restos decantados da massa do vivido. Esse é o segredo da liga dos coletivos? "Tá na planilha": diz de nosso desejo de ultrapassar um paradigma quantificador e utilitarista. E "negro nórdico é o topo da cadeira alimentar": tentamos nuançar o fálico das escalas identitárias. Ou elaborar o medo da destruição da cultura: "meu pai ‘trabalha’, ele é ‘artista’" —sempre entre todas as aspas. Tem o clássico "Liberou, liberou geral", que diz da velha coragem de sustentar o desejo. Ou a sábia máxima ética para alertar os amigos (e a nós mesmos): "É fria, Didi". Assim como o "lacranizou", mistura improvável de Lacan e lacrar, neologismo que se revelou muito útil. "Obstinada como uma banana (torta) em busca do sol": a inexorável lei da fotossíntese. Ou sua versão esperança: "vem na minha que só faz sol". Construímos até a negação irônica e afirmativa de nosso jogo: "Não transo frases". Isso tudo entre imagens do meu sanguinho, de Naruto, xitos e Afrodite —como não lembrar para sempre que nos aconchegamos e sobrevivemos ao annus horribilis de 2021?

Sei que 2022 não será um ano de luz. Quem sabe de batalha. Sei também que 2122, se não nos engordar, nos matará. Mas hoje, terceiro dia do ano novo, queria deixar registrado, por escrito, que chegar junto, às vezes, é possível. Isso é aconchego. Chegar junto com o outro é encontro. Essa talvez é a essência do conceito: chegar-com. É amor, "fall in love". É a gente cair junto, eu e você. A arte de fazer concha para gestar a pérola.

Então, antes que a violência nos destrua, vem comigo.

Vamos juntos. Aconcheguemo-nos.

(E um agradecimento aos santos e aos parceiros deste texto.)

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