Maria Homem

Psicanalista e ensaísta, com pós-graduação pela Universidade de Paris 8 e FFLCH/USP. Autora de "Lupa da Alma" e "Coisa de Menina?".

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Maria Homem
Descrição de chapéu mudança climática

O bebê que mamava demais

Abria a boca e engolia uma árvore, depois outra, e mais uma, quando ia ver já tinha varrido do mapa florestas inteiras

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O bebê era glutão. Mamava, mamava sem cessar. Abria a boca e engolia uma árvore, depois outra, e mais uma —quando ia ver já tinha varrido do mapa florestas inteiras.

Chupava com toda a força os rios, os mangues e os lagos. O mar não: ainda não mamava salgado. Mas punha pra dentro todo tipo de bicho da água: peixe, baleia, polvo, tartaruga. Aprendeu até a fazer "viveiro".

Também mamava leite negro que brotava da terra. Da terra terra e da terra embaixo do mar. Esse leite ainda era muito nutritivo e virava um monte de brinquedo.

Ilustração do rosto de uma pessoa. Ao redor, há várias mãos. Uma delas leva uma colher a boca e outras com facas atravessam o rosto
Ilustração para coluna da Maria Homem - Luciano Salles

Era esperto o bebê. Aprendeu a mamar a montanha também: tirava metal e pedra e tudo que ele inventava que era bom e tinha valor. Ele mascava a montanha e ia fazendo ela oca por dentro. Ou ia fatiando: cortando o cocoruto, o lado, o dentro, o embaixo. Às vezes ela ficava pelada ou um buraco na terra. O bebê fazia assim nas montanhas e também nos rios. De vez em quando aparecia um rio bem grande com uma fila de casinhas pro bebê poder mamar metálico, escondido ou não. A regra estava confusa e não era mais óbvio o que era bom ou ruim. De qualquer forma, agora a gente sabia pois tinha drone e satélite que viam tudo (de vez em quando o bebê ficava bravo de ser vigiado e saía quebrando por aí).

Imagem aérea mostra márea de ineração na Serra do Curral, em Belo Horizonte
Mineração na Serra do Curral, em Belo Horizonte - Divulgação

Ele logo fez outra descoberta: aprendeu a fazer leite. Primeiro era discreto e variado, mas depois ficou craque e fez tudo igualzinho, bem verde ou colorido. Como ele era sabichão, "cultivava" tudo: planta, tronco, bicho, ovo, coisa. O negócio era leitinho-dimdim. Essa sua grande cultura.

O bebê descobriu também um truque: prendia um rio até ele ficar bem bravo e dar um murro no lago. Ou esquentava uma coisa até ela ficar bem forte e empurrar outra. A gente sabe: a força é represada e então, quando solta, ah que delícia. Puro prazer e muita energia. Energia pra girar muita máquina e acender muita luz. O bebê, por natureza, gosta de luz e movimento. Do silêncio e do escuro ele tinha medo. Então fazia muito barulho e ligava todos os botões.

E assim ele vivia, mamando muito e ficando cada vez mais fofo.

Mamava tanto que ficava o dia todo fazendo xixi e cocô pela casa inteira. Ainda não inventaram fralda boa para isso. Fizeram uns potinhos de lixo mas não sabiam muito bem onde jogar.

O bebê começou a desconfiar que ia dar problema. Mas tudo bem, depois a gente vê. Vamos mamar mais um pouquinho que tá muito gostoso.

A mamãe era legal e não reclamava nunca. Se ela não dava muito leite, ele esperneava e ia pra outro lugar. Ou tirava do vizinho. Punha soldadinho na fronteira e falava assim: deixa eu passar que eu preciso ter um porto pra mamar em paz. Aí o vizinho, mesmo com amigo poderoso, ficava com medo e aceitava.

Esse jogo dos vizinhos o bebê já conhecia. Era craque: pagava uns pedágios aqui, umas alianças acolá, fazia umas intriguinhas. Tá, livro básico de historinha.

Mas agora coisas estranhas começaram a acontecer. Ele estava na dúvida se a mamãe estava brava, louca, perdida ou o quê. Começou a ter muito muito calor. Secou tudo e até pegou fogo. Depois ficou muito muito frio e matou coisa. Depois teve vento demais, furacão, tsunami, terremoto. Vírus, bactéria, minibicho desembestado. E água, muita água na cabeça.

Aí o bebê entendeu que tinha algo errado. Fazia tempo que chovia demais e as montanhas eram ocas e suas engenhocas estavam meio velhas e quebradas. Já tinha tido mar de lama, mar de lixo e mar de veneno.

Será que a mamãe está desequilibrada mesmo ou é só um acaso? Agora pedras enormes racham, rios transbordam e montanhas desabam. Coisas são soterradas.

O bebê estava com medo da mamãe morrer. Mas não. Isso não vai acontecer. Não, não. Pachamama é inquebrantável e vai virar até filme da Disney. E também, tem foguete para viajar. Manda bala, mama até o fim.

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