Maria Homem

Psicanalista e ensaísta, com pós-graduação pela Universidade de Paris 8 e FFLCH/USP. Autora de "Lupa da Alma" e "Coisa de Menina?".

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Maria Homem
Descrição de chapéu Mente

Pela liberdade de mentir e matar em paz

Há vários equívocos em nosso tempo, mas um dos maiores gira em torno da liberdade, o conceito-fetiche do momento

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Li esses dias uma chamada neste jornal comparando os dois temas mais comentados da semana, um casamento e um negócio. Eu poderia perfeitamente me juntar à massa digital e falar do casamento de Janja e Lula, ou de Lula e Alckmin —a comida, a bebida, os vestidos, valor, simbolismos. O amor e suas roupagens: um tema digno de reflexão séria. Mas olhemos para a outra, fatal, a aliança Musk-Bolsonaro. Foram feitos um para o outro.

Há vários equívocos em nosso tempo, como aliás em qualquer tempo, mas um dos maiores gira em torno da liberdade, o conceito-fetiche do momento. Tudo cabe nela. Os piores crimes agora não acontecem só em nome de Deus ou do bem ou da pátria, mas em nome da liberdade, essa nova deusa e álibi. Musk e Bolsonaro defendem a liberdade total como valor supremo.

A ilustração de Luciano Salles, publicada na Folha de São no dia 23 de maio de 2022, retrata dois homens sendo que a direita, em primeiro plano, um homem semelhante ao presidente Bolsonaro, mas de cor amarela, vestindo um roupa de pele de animal, com tacapes e machadas pré-históricas. Ele está envergonhado, comendo um pastel de modo que o óleo escorre pelas mãos, queixo. Em segundo plano, um robô de forma tubular de cor marrom, com adesivos do Twitter, Tesla, SpaceX, um foguete e uma bateria, todos colados no corpo do robô. A cabeça do robô é de vidro da cor verde e dentro do vidro uma imagem da cabeça do bilionário Elon Musk é projetada. O robô emite um som simbolizado como reticências e o homem amarelo, pré-histórico,  emite um ruído em forma de um balão de texto com apenas um coração dentro.
Luciano Salles

Para começar, a liberdade de fazer negócio. De explorar "recursos" e de acumular dinheiro. De "monitorar" florestas e riquezas, de "conectar" escolas e mentes. A liberdade de ir e vir que pode significar aglomerar numa pandemia viral aérea. A liberdade sobre meu corpo que pode significar não usar máscara, essa focinheira. Liberdade de expressão, que pode ser direito de mentir, caluniar e de cancelar, erguendo e destruindo personas. Ou se estender ao direito de inventar, enganar, extorquir. Sim, direito de criar mentiras, até escolas ao gosto do freguês (!), de arquitetar realidades paralelas e teorias da conspiração com a finalidade de manipular os afetos primários das pessoas que estão perdendo esse jogo (quase todas) e assim ganhar eleições. E ganhar eleições com a finalidade, por sua vez, de passar novas leis para aumentar a liberdade de extrair tudo o que se puder da natureza e das pessoas, natureza e pessoas do meu país ou de outro qualquer em que eu encontre uma brecha para entrar. Para que? Para ter a liberdade de acumular mais dinheiro e mais poder e até mais liberdade. Para que? Para poder entrar em mais territórios e fazer a mesma coisa com a mesma historinha para boi dormir. Historinha da liberdade total (de uns gatos pingados).

Abrimos a caixa de Pandora da liberdade, esse estimado bem da modernidade. E o que surgiu? A luta sem vergonha pelo direito ao gozo de escoar livremente a pulsão. Todas as pulsões. Se for para reprimir alguma coisa, que seja controlar a pulsão sexual, de preferência a alheia. Viva a minha liberdade total e a minha família de bem. E nada melhor do que achar um inimigo para legitimar meu desejo de morte e a cereja que não surpreende nesse bolo: viva o meu gozo e meto bala se você ousar protestar. A pulsão de destruição se quer plena.

Porém, liberdade total para todos é ficção. A civilização é recalque do livre escoamento pulsional: ela cobra seu preço e justamente daí vem seu mal-estar. É estrutural, não adianta roubar no jogo. Já sabemos disso conceitual e pragmaticamente. Estamos em um momento histórico em que a real pergunta é como ultrapassar este capitalismo e não como deixar alguns poucos retornarem aos seus estágios mais predatórios.

Voltando aos nossos personagens. Seja exercendo a mentira e criando montagens ao som de um pastel de boteco ou no conforto de um hotel de luxo na província, por favor, deixem nossa liberdade em paz. Queremos comprar, vender, "descomprar" e recomprar todos os brinquedos, em todos os espaços e gozar de tudo e de todos. E não venha nos encher o saco com regulações, limites, leis e essas palavras fora de moda no brilhante mundo futuro que estamos tramando.

Normalmente eu pararia nesse parágrafo e deixaria a cabeça do leitor produzir o óbvio. Mas coloco aqui preto no branco: quando vamos parar de fingir e ter a coragem de barrar isso?

Isso é o mal.

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