Maria Homem

Psicanalista e ensaísta, com pós-graduação pela Universidade de Paris 8 e FFLCH/USP. Autora de "Lupa da Alma" e "Coisa de Menina?".

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Maria Homem
Descrição de chapéu Mente

Refúgio

É reconfortante pensar que temos um lugar para o qual fugir e onde se refugiar; são coisas diferentes mas carregam em si o mesmo radical

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Esta semana assisti a um espetáculo em que pessoas muito diferentes se encontram e conseguem extrair de si, juntas, o seu melhor. E talvez essa seja uma das definições possíveis para o amor. Elas tocavam e cantavam, em diversos estilos, como se fosse um ritual ecumênico com algo que as transcendia, a música.

Era a Orquestra Mundana Refugi. Tinha gente do Irã, da Turquia, da Palestina, Congo, Guiné, França, Síria, Cuba, Venezuela, China e Brasil. Cantavam em português e muitas outras línguas —e isso era secundário diante da expressão de nosso sofrimento, nossa resiliência e alguma alegria. Todos entendíamos tudo isso.

A partir dessa experiência tão forte, fiquei pensando no milagre da música e da harmonia. E no conceito de refúgio. Quando a gente consegue alcançar algum? A arte de criar um campo de forças e sustentação para todos os que desejem (precisem) se refugiar de algo que está causando sofrimento.

Ilustração mostra homem de boca aberta, ele é cinza e de dentro dele sai um passarinho como o logotipo do twitter. Ao seu redor, páginas de jornal. Na sua cabeça, um quadro com as cores CMYK
Luciano Salles

Nessa orquestra eu vi que é possível se refugiar no estrangeiro e operar ao mesmo tempo na cultura do outro e na sua própria. Pessoas que, juntas, podem tocar seu instrumento e cantar sua ancestralidade na sua língua materna mas também, na sequência, cantar na língua do anfitrião. Com seu sotaque cheio de charme.

É sempre reconfortante pensar que temos um lugar para o qual fugir e onde se refugiar. São coisas diferentes mas carregam em si o mesmo radical, aquele que diz de um movimento em direção a um sonho, à construção de um lugar mais respirável.

Qualquer casa tem que ter suas rotas de fuga. Qualquer casa grande, de espetáculo ou de compra, tem que ter saída de emergência para poder funcionar. É muito importante psiquicamente que se possa ter uma via de escape. Se não vislumbramos a rota de fuga, sobe ao máximo a angústia. E se, pelo contrário, imaginamos um refúgio qualquer, renovamos o ânimo, aquele sopro que anima a alma (cuja etimologia vem do latim anima, o que anima).

Há os refúgios assentados na crença. Por exemplo, aqueles da crença compartilhada, como as religiões e os jogos. O refúgio, mesmo que momentâneo, acontece na alegria da partilha com o outro no ritual da religação ou da vitória. Por exemplo, neste momento nossa irmã de continente, Argentina, vibra.

E há também os refúgios que, embora lidem com algumas crenças (usualmente narcísicas, embasadas em jogos de disputa de valor entre os pares) nasceram voltados para poder pensar a realidade, de forma livre.

A universidade foi, no final da Idade Média, um projeto inédito, criado como um refúgio para o pensamento e a pluralidade. Ela teve a peculiaridade de ser uma construção moderna e ao mesmo tempo seu facilitador, em um processo dialético ímpar.

O humanismo renascentista e o desejo de mimetizar a pluralidade do universo em pequenas gônadas fizeram nascer esse refúgio que é a universidade, o trazer para perto a pluralidade dos saberes e das gerações. Uma espécie de hub, que segue até hoje, em sua junção com a ciência e o mercado. O mesmo tipo de construção que hoje buscamos desenhar com nossas tecnologias de comunicação e fluidez.

Uns séculos depois, tivemos a criação do jornal —a oração matinal do homem moderno, como diria Hegel. Lugar de diversidade, crítica e humor. Também um empreendimento, claro.

De qualquer forma, espaço para o pensamento livre, em que se poderia exercer um estilo analítico. Um lugar para o qual talvez ainda se possa desejar voltar.

Gostaria de fechar com a imagem de um outro tipo de refúgio, concretíssimo, onde estive cavando buracos para ajudar tartarugas amazônicas a sobreviver na imensidão mágica do rio Xingu. Chama de fato assim, Revis, Refúgio de Vida Silvestre. A natureza, como sabemos, é implacável e, para cada 1.000 que nascem, somente uma consegue chegar à vida adulta.

Vou deixar a coluna fixa mas continuarei a falar e a escrever pelas teias do mundo, quem sabe a orquestrar algo.

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