Marilene Felinto

Autora de "Mulher Feita e Outros Contos" e "As Mulheres de Tijucopapo". Mantém o site marilenefelinto.com.br

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Artista Cecilia Cavalieri joga às traças miolos de 'Os Pensadores'

Em trabalho que envolveu perfurar livros de filosofia e dar restos a bichos, ela reflete sobre falta das mulheres ali

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Uma vassoura que pensa, encostada na parede ("A Pensadora"); uma coluna de cinco metros formada por livros de autoria de pensadoras mulheres, perfurados ao meio e atravessados por uma viga que se equilibra como uma coluna cervical ("Xs PensadorXs").

Dois exemplos da produção artística de Cecilia Cavalieri, concebidos a partir da reação da artista à constatação de que, na coleção "Os Pensadores", de história da filosofia, não há um único nome de mulher entre seus 52 volumes.

A instalação 'Xs PensadorXs', criada pela arista plástica brasileira Cecilia Cavalieri
A instalação 'Xs PensadorXs', criada pela artista plástica brasileira Cecilia Cavalieri - Reprodução

A coleção, "que condensa 25 séculos do pensamento anglo-europeu, masculino e branco", teve sua primeira edição (Abril Cultural, 1973) na ditadura, "o que diz muito de um projeto de dominação", comenta Cavalieri, de 36 anos, paulista radicada no Rio de Janeiro.

"Tudo começou a partir de uma reflexão minha acerca do trabalho doméstico", diz. "Olhava aquela coleção com certa raiva, pensando no que teria tornado possível a sua existência: quem cozinhava para os pensadores, quem limpava, cuidava das crianças?"

Desse questionamento, surgiria a obra "Mundos em Fricção "" Narrativa Tríptica", que inclui, além da vassoura, duas outras montagens: os 52 livros de "Os Pensadores" perfurados ao meio e amontoados ao lado da vassoura e uma prateleira com os fragmentos de papel que restaram da perfuração dos livros, misturados às traças que ela encontrou no ateliê durante o processo.

O tríptico foi exposto no Paço Imperial do Rio de Janeiro, em 2018. Cavalieri explica que incorporou as traças (para se alimentarem dos miolos) depois de pisar em várias delas no ateliê e se questionar. "Meu trabalho gira em torno dos processos de subalternização humanos e não humanos, a questão animal também é muito importante".

Para Cavalieri, ser artista "tem mais a ver com uma maneira de estar no mundo do que com fazer ou não fazer determinado procedimento objectual". Na escolha pela vassoura como objeto-símbolo do papel histórico da mulher que limpa e supostamente não pensa, ela discute a ideia de imanência.

Ou seja, a existência da mulher na vassoura, a existência da vassoura como inerente à mulher, mas como valor do pensamento que resulta do fazer material e concreto, do pensar por aí, limpando, cozinhando, fazendo arte.

A instalação 'Xs PensadorXs', criada pela artista plástica brasileira Cecilia Cavalieri
A instalação 'Xs PensadorXs', criada pela artista plástica brasileira Cecilia Cavalieri - Reprodução

"Minha questão com a vassoura vem da descoberta que fiz com o nascimento de minha filha [que tem hoje cinco anos], quando percebi que, para poder produzir arte e trabalhar, eu precisaria subalternizar outro corpo, provavelmente de mulher e não branco, que cuidasse de minha filha. E essa condição eu não topei naturalizar por não fazer sentido para mim."

Para a composição da coluna de livros "Xs PensadorXs" --exposta em 2019 na galeria A Gentil Carioca--, Cavalieri contou com a participação de diversas mulheres na escolha dos títulos, todos ensaísticos, sem prosa literária ou poesia porque, segundo ela, esse era o único campo a que sempre esteve relegada a atuação "feminina".

Quando pediram para Cavalieri precificar o trabalho, ela deu como valor um salário mínimo ("para confrontar a instituição, o mecenas, com o valor do mínimo do Brasil de hoje"). Isso, "ou o valor total do pensamento feminino".

Outro trabalho notável dela é o livro "La Femme", de 2019, em que ela "hackeou", como diz, um manual francês de filosofia sobre a natureza, trocou todas as palavras natureza, natural, naturante por mulher, feminino, "feminante", lançou nova edição e a infiltrou ("como uma guerrilheira") em livrarias de Paris.

Conheci o trabalho de Cavalieri recentemente. Achei genial, não somente como inquietação e solução estética, mas também como potência singular de intervenção política. Senti um tanto de vergonha por minha geração, quase 30 anos mais velha, nós que estudamos os "Pensadores" sem nem ao menos notar a ausência de mulheres ali.

Além de artista, Cavalieri é pesquisadora em artes visuais e doutoranda da Universidade Federal do Rio de Janeiro nesse campo. Ela se define como cosmotransfeminista, antifascista, mãe, cozinheira etc. Além do Rio, já expôs em Paris, Berlim e outras cidades da Europa. Sua obra está no site ceciliacavalieri.com.br.

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