Marilene Felinto

Autora de "Mulher Feita e Outros Contos" e "As Mulheres de Tijucopapo". Mantém o site marilenefelinto.com.br

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Marilene Felinto

Psicologia de eleição

Para população marginalizada, votar deve ser uma aberração sem sentido

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Está louco. Sair para votar, supor que acredita na cidadania, no direito à cidade, fingir que não há indigentes nas ruas, nas favelas dos municípios... Dissimular... Como se na cidade não houvesse infelizes.

No Rio de Janeiro, eis como exemplo, há um lugar que se chama favela do Rodo, no bairro de Santa Cruz, zona oeste, o mais distante da região central da cidade. O rodo... utensílio logo associado a pano sujo, à função última, à faxina ao rés do chão.

Favela do Rodo... Está louco. Como é possível? E ali também, na mesma região administrativa de Santa Cruz, fica o lugar chamado Paciência. Então! Qual a filosofia política do Rodo? Qual o paradigma político da Paciência?

Movimento na favela da Rocinha, na zona sul do Rio de Janeiro - Eduardo Anizelli - 22.set.20/Folhapress

O fato é que Santa Cruz fica a mais de 60 quilômetros do centro do Rio que parece ingovernável. O fato é que não há como tirar da cabeça essa favela do Rodo. Outro dia saiu uma notícia sobre esse lugar de que nunca se ouve falar.

Notícia de cunho policial, de criminalização da juventude negra, de institucionalização da violência de Estado contra a pobreza.

Então, sair para votar numa atmosfera sombria dessas, de irracionalidade, de dominação dos fortes de sempre contra os fracos de sempre, de injustiça, de descaso da aristocracia jurídica contra os infelizes. Está louco. Desencanto total.

Além do mais, a eleição é da cidade, para prefeitos brasileiros, mas parece que é transnacional, que a pessoa tem que estar interessada na eleição do presidente dos Estados Unidos... aqueles “Joes” ou “Josephs”, os políticos deles... Está louco.

A eleição é brasileira, mas o mapa é dos norte-americanos, que dão sua aula de geografia: já se sabe onde ficam os estados de Nevada, Geórgia e Pensilvânia. Mas não se sabe onde está a favela do Rodo.

Não se sabe quantos vivem lá, como são, e se conhecem ali uma coisa chamada “núcleo básico da dignidade da pessoa humana”. Está louco. Nesta espécie de imitação de democracia, votar como um autômato, que é mais do que um alienado... Nenhum ativismo mais, que essa época já passou...

Votar —na Paciência, na favela do Rodo ou na capital de São Paulo— é cada vez mais como ficar repetida e ininterruptamente, no turno das 7h às 5h, apertando parafusos na linha de montagem da fábrica.

Não se sabe para quê nem para onde vão aqueles parafusos apertados em pedaços de peças que vão se juntar a partes de outras peças que vão formar o quê? Qualquer semelhança com o filme dos tempos modernos de Charles Chaplin não será mera coincidência. Será continuado sintoma da alienação.

Eleição no Brasil é uma concessão regulada e periódica da classe dominante às demais classes sociais, podendo ser-lhes retirada quando os dominantes assim o decidem! É isto (em palavras de Marilena Chaui).

Está louco! Sair para votar no espírito de apatia, obediência e passividade (estado natural da população, do rebanho desorientado mas domesticado, como diz Noam Chomsky).

O rebanho desorientado representa um problema, afirma ele. Temos de impedir que saia por aí urrando e pisoteando tudo. Temos de distraí-lo. Ele deve assistir aos jogos de futebol, às séries cômicas ou aos filmes violentos.

Rebanho domesticado não faz revolução. Está louco. Sair para votar já sem militância, já sem entusiasmo... Inventar que o interesse público, visando ao bem de todos, prepondera sobre o privado... Uma piada brasileira.

Está louco. É claro que, para a maioria da população marginalizada, votar deve ser uma aberração sem sentido. Resta consolar-se. Pensar que outras pessoas compartilham desse sentimento de insignificância, confusão e impotência.

Sair para votar com a certeza de que a pólis, como espaço público —rua, calçada, ciclovia—, organizado por leis e instituições, só existe para alguns —privilégio das máquinas agressoras, os assassinos do trânsito, os machos.

Voto em inércia... Ainda que este desalento soe injusto para com certa geração que vai tentando pintar de preto e de lilás —de negros, de feminismos, de homoafetividades, de transafetividades, de “mandatas coletivas”— as câmaras de vereadores, os comandos executivos das “metrópolis”...

Quem sabe com mais gente socialmente “precária” no poder, a coisa se modifica desde as estruturas...

Votar para um quilombo periférico —quem sabe?—, candidatura coletiva. Definir-se como de esquerda. E admirar Luiza Erundina: como essa mulher aguenta, já passando dos 80 anos de idade, essa classe política empedernida, patriarcal, misógina?

Está louco. Acreditar em padrões de civilidade, em participação democrática na vida política? Mas como? Eleição nacional soa a mero processo de consolidação da desigualdade. Retórica parlamentar. Retórica midiática. Sacanagem. Louco.

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