Marilene Felinto

Autora de "Mulher Feita e Outros Contos" e "As Mulheres de Tijucopapo". Mantém o site marilenefelinto.com.br

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Marilene Felinto

Complexo de 'Negrinha'

É importante que haja revisão da aberração racista chamada Monteiro Lobato

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Louvável a honestidade intelectual do colunista Marcelo Coelho, que, nesta Folha de 19/1 último, atestou convicto o racismo escancarado do escritor Monteiro Lobato.

Coelho elenca termos, expressões, trechos inteiros da ideologia racista nos textos, da literatura infantil aos ensaios desse autor que tece elogios às “raças europeias”, aposta na mestiçagem brasileira para fazer desaparecer o negro no futuro do país e contrapõe o “negro selvagem” ao “eugenismo humano” branco.

Ao contrário de Coelho, entretanto, que diz ter tido experiência também positiva com a literatura de Lobato, eu mal li o autor na infância. Não tive contato, na escola de Recife, onde vivi até os 11 anos de idade, com “Emília” nem “tia Anastácia” ou outras criações do autor paulista.

Líamos outras coisas na coleção de livros didáticos de leitura, da primeira à quarta séries, que se chamava “Nordeste – Linguagem”. Tinha capas muito coloridas, cheias de ilustrações de folhas de cana-de-açúcar, cactos e mandacarus, pontes sobre os rios de Recife, jangadeiros e coqueiros.

E o que líamos? Poemas de Manuel Bandeira e narrativas de episódios marcantes da história de Pernambuco, por exemplo. Poemas, como se fossem cantiga de roda: “Bão balalão, / Senhor capitão, / Tirai este peso / Do meu coração. / Não é de tristeza, / Não é de aflição: / É só de esperança, / A aérea esperança... / Aérea, pois não! [...]”. (“Rondó do Capitão”, de Bandeira, no livro da segunda série!)

Episódios da história: a façanha das heroínas de Tejucopapo, conheci no livro de linguagem, elas que defenderam sozinhas o vilarejo pernambucano dos invasores holandeses no século 17. Daquela leitura eu tiraria, décadas mais tarde, o título de um romance meu.

Fui ler Lobato na escola de São Paulo. Pouca coisa. E um único personagem me interessou: Jeca Tatu, porque era um excluído, injustiçado, solitário. Por intuição, recusava-me a aceitar que havia indolência ou preguiça naquele homem acocorado na desolação de um quintal de terra batida, descalço, o olhar perdido no nada.

Peguei antipatia por Monteiro Lobato, porque destratava o caipira Jeca Tatu. E minha antipatia foi num crescendo quando me puseram em contato com a menina do conto “Negrinha”.

Marcelo Coelho cita esse conto em sua coluna como ressalva ao racismo explícito de Lobato, ainda que o escritor trate ali de uma “menina de criação”. Como diz Coelho, o texto mostra as crueldades praticadas por uma sinhá branca contra essa menina preta sem nome.

O texto de Coelho me jogou de volta à escola pública paulista, em que a professora de português organizou leitura em voz alta de “Negrinha”, cada aluno lendo um trecho. Até chegar ao ápice da crueldade da patroa contra a “menina de criação”: que colocou um ovo quente, recém-saído da panela fervente, em sua boca.

Precisei esconder minha vontade de chorar pelo sofrimento da menina e de me esconder também de todos naquela sala estranha, estrangeira, cheia de meninos e meninas branquelos, de sobrenomes italianos, alemães e japoneses.

Afinal, quem era a negrinha senão eu? Ainda que houvesse outras poucas crianças negras na classe, a negrinha, estava na cara, era a minha ancestralidade. Detestei Monteiro Lobato de novo.

Aquele idiota daquele escritor achava o quê? Que estava libertando as negrinhas ou melhorando a vida delas ao expor a dor das criaturas daquele modo? E a professora? Precisava ecoar aquela desgraceira humilhante em plena aula? Revolta. Indignação.

Mas eis que, dez dias depois de ler a coluna de Marcelo Coelho, deparo-me com uma pequena reportagem da TV Vanguarda, afiliada da Rede Globo no Vale do Paraíba, região onde fica Taubaté (SP), cidade onde nasceu e viveu o fazendeiro Monteiro Lobato.

No Jornal Vanguarda local, das 19h10, de 29/1, uma matéria com a bisneta de Lobato, Cleo Monteiro Lobato, anunciava uma nova edição “revisada” do livro “A Menina do Narizinho Arrebitado”, sem os epítetos racistas.

Cleo Lobato contou que alterou, por exemplo, certa caracterização da tia Anastácia (chamada de “negra beiçuda” e “negra de estimação” nos originais): “Em vez de a negra deu uma risada gostosa”, explica ela, “tia Anastácia deu uma risada gostosa. Troquei um nome. E isso dá um peso de igualdade à tia Anastácia, com a dona Benta, com a Narizinho”.

A matéria da TV Vanguarda, que de vanguarda mesmo não tem nada —a emissora é péssima em qualidade da informação, tendenciosa, careta e reflete o espírito reacionário e politicamente à direita da região—, fazia uma ginástica noticiosa para contrapor a visão arejada da bisneta às qualidades do escritor racista.

Importante é que haja “revisão”, explicação, alteração (a aérea esperança!), chame-se como for, dessa aberração racista chamada Monteiro Lobato para crianças (e adultos).

Erramos: o texto foi alterado

No conto "Negrinha", de Monteiro Lobato, a patroa coloca um ovo quente na boca da criança, não em suas mãos, como afirmava versão anterior deste texto.

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