Marilene Felinto

Autora de "Mulher Feita e Outros Contos" e "As Mulheres de Tijucopapo". Mantém o site marilenefelinto.com.br

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Marilene Felinto

Alfredo Bosi

Verdadeiro formador de gerações, falava como um rio que corre e hipnotiza

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Morremos um pouco mais com sua morte, ex-alunos dele. Um dos mais impressionantes professores que alguém pode ter tido. Chamava-se Alfredo Bosi, importantíssimo docente universitário, crítico literário e estudioso de literatura e da sociedade brasileira.

Morreu na última quarta-feira (7), de Covid-19 (ou da esculhambação brasileira chamada governo genocida Bolsonaro). Para além da consternação, indignação por mais uma morte que teria talvez sido evitada.

Bosi foi meu professor de literatura brasileira na faculdade de letras da Universidade de São Paulo, em 1978 ou 1979. Quem teve o privilégio de estudar com ele sabe o quanto o contato com aquele homem teria de ser inevitavelmente marcante.

O crítico literário e professor da USP Alfredo Bosi, em sua casa - Lili Martins - 18.mar.99/Folhapress

Um dos professores mais sérios que alguém pode ter tido. “Sério” não apenas pela seriedade do conhecimento que tinha e transmitia —sério também na figura física, que dizia da integridade, do respeito e da elegância. Andava sempre de paletó e tratava os alunos e alunas, um bando de jovens perdidos nos seus 18, 20 anos, por “senhor” e “senhora”, numa época em que todos, outros professores e alunado, já nos tratávamos por “você” com naturalidade.

Mas vindo de Alfredo Bosi, aquele tratamento que pareceria estranho era pura coerência, extensão natural do seu tipo reservado, educado em outras paragens tradicionais, mas sem conservadorismo. E ele, mais do que ninguém, combinava com o nome do departamento em que ensinava: Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas.

Clássico, emérito, mestre genial. Nas acomodações degradadas onde funcionava o curso de letras da USP naqueles tempos, chamadas de “colmeias”, assistíamos a algumas aulas em pequenos anfiteatros onde o professor e sua mesa ficam abaixo dos alunos empoleirados nas cadeiras do auditório.

Bosi tinha um quê de seminarista —e era religioso, todos sabiam—, óculos de lentes muito grossas. Sentado lá na frente, diante da mesa, dava aula de cabeça baixa, o tempo todo, os olhos fixados na mesa. Raras vezes abria um livro: trazia o livro todo na cabeça. Falava como que em corrente, como um rio que corre e hipnotiza, ligando a água à água, de modo que tudo fluía, fazendo todo o sentido do mundo.

Assistíamos àquela preleção bestas de estarmos absolutamente mobilizados, encantados com aquele antiespetáculo que era sua aula. Não havia nada de teatral no gestual em classe, no tom de voz monocórdico: o show era mesmo o pensamento daquele homem se fazendo diante de nós com perfeição de argumentos, de conceitos, de fatos históricos e suas conexões cristalinas.

De uma aula sobre Machado de Assis, ou de outra sobre Lima Barreto, saí pasma com tanta clareza, com o tanto de coisas que eu não sabia e fiquei sabendo, não só sobre Machado e Barreto, mas sobre a história do país e da vida —da minha própria vida. Assim são os grandes professores. Sua “História Concisa da Literatura Brasileira”, já na 50ª edição, segue como meu manual de cabeceira.

Enquanto aluna sua, ele se dirigiu a mim pessoalmente duas únicas vezes. A primeira, ao me devolver o trabalho de fim de semestre em sua disciplina, em que analisei o papel das empregadas domésticas na obra de Clarice Lispector. Daquele seu ar que parecia grave ao falar, me disse, um tanto tocado, o quanto minha abordagem era singular ou especialmente importante.

Corei no ato, eu que tinha vindo de uma escola pública ruim e zanzava pelas campinas da imponente USP certa de que não sabia de nada, um tanto asfixiada pelo universo acadêmico ainda careta e bastante excludente. Reconheci naquele momento a erudição generosa do professor, sua gentileza no trato com aquele bando de jovens ignorantes no qual eu me incluía.

A segunda vez em que me abordou foi quando me deu retorno da leitura que fez de meu primeiro romance, então ainda inédito. Disse um “muito bem”, com um sorriso no rosto, mas sorriso difícil de traduzir então e até hoje, e completou: “Mas quero ver a senhora escrever mais”.

Talvez o professor nem se lembrasse mais de mim. Há alguns anos, encontrei-o no Tuca, teatro da Universidade Católica de São Paulo, em evento de resistência à barbárie golpista brasileira, ele sentado lá no palco, ao lado de outras personalidades, ele que foi também um militante pelos direitos humanos e por justiça social.

Talvez o professor nem se lembrasse mais de mim. Há tempos não o via. Nem nunca fui daqueles oportunistas que andam pelos corredores da academia na cola destas sumidades como Bosi, puxa-sacos que buscam galgar a todo custo posições dentro da universidade.

Mas pouco importa se ele lembrava ou não de mim. Os melhores professores, os verdadeiros formadores de gerações, são esses de quem nós, sim, é que lembraremos para sempre.

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