Marilene Felinto

Autora de "Mulher Feita e Outros Contos" e "As Mulheres de Tijucopapo". Mantém o site marilenefelinto.com.br

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Marilene Felinto

Livro infantil sobre Luiz Gama distorce história da escravidão negra no país

O texto é de vomitar, tamanha a indignação que provoca em quem lê com alguma sensibilidade

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A pessoa que denunciou este livro-crime, “Abecê da Liberdade: A História de Luiz Gama, o Menino que Quebrou Correntes com Palavras", ao site UOL (conforme reportagem de 11/09) é uma mulher branca, cientista social, mas que se identificou na matéria apenas com as iniciais de seu nome.

Quem sabe teve medo de que a poderosa editora dona do livro-crime (Companhia das Letras/Companhia das Letrinhas) e os autores (José Roberto Torero e Marcus Aurelius Pimenta) a perseguissem.

Sintomático que a primeira ponderação da cientista indignada com o texto infame —um livro para crianças, que distorce e minimiza a história da escravidão negra— tenha sido uma analogia: e se o tema fosse os judeus, a história do holocausto, qual seria a repercussão?

Nesse caso, o enredo teria sido algo assim: crianças judias presas num campo de concentração nazista, tristes, mas resignadas quanto a seu fim próximo, na câmara de gás, resolvem brincar de esconde-esconde e de pega-pega, quase felizes, como última atividade lúdica antes da morte.

"Abecê da Liberdade", livro infantil que a Cia das Letras está recolhendo por ter trechos racistas reprodução - reprodução

Pasmem! Qual não teria sido o rebuliço causado por esse absurdo!? Mas como o tema é a escravidão, os negros, os porões de um navio negreiro, o episódio, em tudo sórdido, vai provavelmente se dissipar no ar em breve.

Eis uma página do livro-insulto, livro-afronta, que supostamente trata da infância do escritor, advogado e abolicionista negro brasileiro Luiz Gama (1830-1882):

“A viagem pelo mar foi tranquila. Não houve nenhuma tempestade, e o navio quase não balançou. Eu, a Getulina e as outras crianças estávamos tristes no começo, mas depois fomos conversando, daí passamos a brincar de pega-pega, esconde-esconde, escravos de Jó (o que é bem engraçado, porque nós éramos escravos de verdade), e até pulamos corda, ou melhor, corrente. Nem parecia que íamos ser comprados por pessoas brancas e trabalhar de graça para elas até a morte. Mas podia ser nossa última chance de brincar. Então nós brincamos”.

O texto é de vomitar, tamanha a indignação que provoca em quem lê com alguma sensibilidade para a tragédia humana. E esse caso diz muito, na verdade, do velho e viciado mercado editorial brasileiro.

A reportagem do UOL conta a história da irresponsabilidade, do descaso dos editores. “Lançado originalmente em 2015 pelo selo Alfaguara, da Editora Objetiva, o livro foi automaticamente incorporado ao catálogo da Companhia das Letrinhas quando a editora Objetiva foi adquirida pelo grupo. Uma segunda edição foi publicada em 2020 sem alterações e vendeu cerca de 2.000 cópias.”

O dano está feito. Pedir desculpas, como fez a editora, assumir que falhou e tirar o livro das livrarias não serve de conserto: se o tema fosse o campo de concentração onde judeus padeceram, certamente os pareceristas da Companhia das Letras teriam tido o cuidado de ler, de avaliar, antes de comprar e —escândalo dos escândalos— republicar sem ler em 2020! Mas como a vida de negros importa pouco, não se deram ao trabalho.

Os velhos caciques do mercado editorial agem como predadores: têm muito dinheiro e saem comprando uns e outros, à esquerda e à direita, de qualquer jeito, enquanto posam, presunçosos, de benfeitores bacanas da cultura do país. Nos anos 1990 (meus tempos dentro da Redação desta Folha), certo tipo de editor visitava muito a Redação do jornal, fazendo lobby junto aos editores de cultura. Uma promiscuidade sem tamanho.

Resta dizer que o caso deste livro está para além de racismo: está para a eliminação da história, para o apagamento da dor e do sofrimento dos escravos negros no Brasil. É a completa distorção, a total despersonalização daqueles milhões de africanos aprisionados e torturados nos navios do tráfico negreiro.

Esse caso de “falha” editorial encerra um tanto de farsa, um tanto do que se chama tokenismo, disfarce de inclusão: publica-se um ou outro autor africano negro para dar ares de “diversidade” ao catálogo dessas casas editoriais.

Se praticassem de fato a justa reparação para com os negros, textos como esse livro afrontoso passariam por algum controle de qualidade. Mas como se trata de negros, tanto faz, como tanto fez.

Sugeri a coletivos negros que processem a editora anterior, a atual e os autores dessa infâmia. É preciso acusar e condenar essa atitude criminosa. Não se trata aqui de liberdade de expressão. Trata-se de liberdade de difamar, insultar, desdenhar do fato histórico. Trata-se de reforçar o racismo arraigado.

Os autores devem ter escrito às gargalhadas que crianças escravas pulavam corda com correntes (ou brincavam de escravos de Jó!). Às gargalhadas. Este o grau do ultraje perverso.

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