Marilene Felinto

Autora de "Mulher Feita e Outros Contos" e "As Mulheres de Tijucopapo". Mantém o site marilenefelinto.com.br

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Marilene Felinto
Descrição de chapéu machismo

Não tem sentido você não gostar do Lula por causa de aborto, disse à minha diarista

Duvido que a conversa com N. tenha surtido algum efeito, submissa que ela é à tirania da religião

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N. é minha diarista quinzenal –eufemismo para "faxineira", menos cínico do que "colaboradora", como se diz hoje–, tem déficit de leitura, por pouca escolarização, e forte recalcitrância a certos temas, movida a desinformação e moralismo. Palavras-tabu como "aborto" ficam ribombando na cabeça dela.

É diarista nova em casa, trabalha bem, delicada, do signo de peixes, em geral calada, de voz boa, não liga rádio e é fiel da igreja Batista. É branca, toda elegante no porte, trabalha também como manicure e tem pouco mais de 50 anos.

Falei apenas indiretamente com N. sobre sexualidade livre e feminismo; sobre luta de classes ou direitos da mulher. Fui rodeando o tema, numa "aula sobre aborto em âmbito doméstico", que começou com queixas dela sobre a carestia e foi desembocar em fake news contra Lula.

Lula em evento em que o partido Solidariedade referendou apoio a sua candidatura. Ele veste terno escuro e camisa branca.
Lula em evento em que o partido Solidariedade referendou apoio a sua candidatura - Marlene Bergamo/Folhapress

Na ocasião, ainda não havia divulgação do tal rascunho de documento da Suprema Corte dos Estados Unidos indicando intenção de proibir o aborto naquele país. Ainda bem, pois como explicar isso a N.? Invejei amigas americanas que responderam com um "fuck you" à Corte. Militantes do movimento Socialistas Democratas da América (DSA, na sigla em inglês) postaram xingamentos, indignadas ante a ameaça de retrocesso.

Voltando a N.: varrendo a sala, na faxina daquele dia, ela reclamou do quanto precisaria trabalhar ainda até se aposentar. Contou que estava com o pagamento do INSS de autônoma atrasado.

Culpei o criminoso Bolsonaro pela aposentadoria postergada, a fome, o aumento do gás (o "fuck you" ecoando no meu ouvido). Do meio da sala, N. parou de varrer, estacou, apoiada no cabo da vassoura, e disse: "Olha, eu não gosto do Bolsonaro, mas também não gosto do Lula".

"Por que você não gosta do Lula?", disparei (ainda que do fundo do meu desalento diante daquela barreira impalpável entre N. e eu). "Porque tenho medo que ele deixe fazerem aborto, tirarem uma vida", ela respondeu.

"Mas, ô, N., quem disse a você que o Lula vai liberar o aborto? Isso não existe!", continuei, controlando-me. Ela respondeu que tinha lido na internet. "Mentira! Isso é fake news", ataquei. "Presta atenção, N. O Lula foi presidente durante 8 anos. Por acaso ele liberou o aborto? A Dilma foi presidente 6 anos. Ela liberou o aborto?"

Concordou que não e disse que todo o mundo na casa dela vota no Lula, o marido, os filhos, mas que ela, na eleição passada, não votou em ninguém. Prossegui no meu discurso: "Presta atenção, N., aborto, num país moralista e religioso como o nosso, não é coisa que um presidente sozinho pode decretar, assinar um papel, e tá feito. Isso não vai existir nunca. Tem Congresso, tem igreja. Em país decente, a população é até consultada, vota sobre se o aborto deve ou não ser permitido".

Ela interferiu, quase entusiasmada: "Ah, é? Você acha que aqui vão consultar?", Não respondi. Continuei: "O que o Lula talvez tenha dito é que aborto é questão de saúde pública. Sabe o que significa isso? Que no Brasil existe aborto liberado para mulher rica e aborto proibido para mulher pobre. Mulher rica vai a uma clínica, a médico particular, e aborta escondido ali. Mulher pobre também aborta escondido, mas sozinha em casa, enfiando uma coisa qualquer no útero e sangrando até morrer. Você acha isso justo?".

Disse que não, que claro que não. Que era contra o aborto para todo mundo. "Pois, então", prossegui, "só que, no Brasil, existe uma divisão: rico com direito, pobre sem direito nenhum. Você sabia que aborto por estupro é permitido aqui no nosso país? Se tua filha fosse estuprada e engravidasse do estuprador, ela ia querer esse filho? Você teria filho de um estuprador?". N. disse que não, "de jeito nenhum".

"Então, N., quando se diz que aborto é questão de saúde pública, é disso que se trata, entendeu? Rico, pobre, violência sexual. Qualquer mulher estuprada tem o direito de escolher se quer abortar ou não, e pelo SUS, de graça. Quanto aos outros abortos, você que pese na tua consciência entre a situação da rica e da pobre. O país é hipócrita, você sabe disso. Não tem sentido você dizer que não gosta do Lula por causa de aborto. Pode não gostar por outras coisas. Por isso, pode esquecer!", terminei, quase aos gritos.

Pensativa, ainda apoiada no cabo da vassoura, ela fez que concordou comigo, disse que reconhecia as qualidades do Lula, que na época dele a pessoa comia carne, andava de carro e de avião. Moveu novamente a vassoura: "É, você tem razão", concluiu, voltando a varrer.

Desânimo. Duvido que minha fala tenha surtido algum efeito, submissa que N. é à tirania da religião, domesticada pelo imaginário social reduzido, que cabe na palma da mão, na unha que ela pinta, nos pedaços de cutícula que arranca das clientes —nas quais, de vez em quando, provoca até pequenos cortes, mas que sangram.

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