Marilene Felinto

Autora de "Mulher Feita e Outros Contos" e "As Mulheres de Tijucopapo". Mantém o site marilenefelinto.com.br

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Marilene Felinto

Trabalho fotográfico de Anna Mariani é tributo à arquitetura popular do sertão

Morta em 23 de junho, fotógrafa lançou olhar iluminado sobre mundo opaco do semiárido

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Morreu no dia 23 de junho último, em São Paulo, a fotógrafa Anna Mariani, cujo trabalho mais conhecido são as fotos de fachadas de casas e paisagens do sertão brasileiro, resultado de suas viagens à região. Seus livros "Pinturas e Platibandas" (1987) e "Paisagens, Impressões: o Semiárido Brasileiro" (1992) reúnem o registro do olhar iluminado que ela lançou sobre aquele mundo opaco.

Tive alguns encontros com Anna, principalmente na década de 1990, que me deixaram uma impressão singular dela e da fotografia como arte. Li sobre sua morte em uma rede social, no próprio dia do velório.

A fotógrafa Anna Mariani durante jantar oferecido pelo empresário Vittorio Rossi Jr. em sua casa, em São Paulo - Zanone Fraissat - 31.mai.12/Folhapress

Procurei notícia na imprensa convencional de jornais, revistas, telejornais, mas não havia. Esse fato confirmou minha percepção sobre a conduta discreta que a fotógrafa adotava na vida. Além disso, pude testemunhar, em nossos poucos encontros, sua visão crítica sobre a mídia em geral.

Conheci Anna em 1992, quando ela cedeu, a pedido da editora 34, uma foto sua para ilustrar a capa da segunda edição de um livro meu. Ali entrei em contato com seu trabalho pela primeira vez e saí perplexa da leitura de "Pinturas e Platibandas".

As fotos das fachadas de casas sertanejas, idênticas àquelas onde meus pais tinham nascido, me afetaram de tal modo como somente o "gume apunhalador da imagem" pode fazê-lo, aquilo que Roland Barthes definiu como o conceito de "punctum", segundo Leda Tenório da Motta explica: palavra latina que significa "ponto", "picada" ou "ferida", elemento que, na fotografia, Barthes diz ser o gume apunhalador da imagem ("Roland Barthes e a arte na fotografia", 2019).

Mostrei logo o livro a minha mãe, ela que não apenas tinha nascido como sido doada, no início da década de 1930, muito menina, a um casal na porta de um daqueles casebres, quando sua família retirante da seca não conseguia alimentar todos os filhos.

Ali agrupadas e ressaltadas em close, páginas após páginas, as fachadas ganhavam valor inédito. As construções tão típicas —a nosso ver coisa simplória, casebres de gente pobre— ressurgiam em cor e luz nunca vistas, provocando um brilho no olhar de minha mãe.

Ela folheava o livro como se ele revelasse uma memória sua encoberta por camadas de poeira —mas então restaurada. Naquele desterro, naquele acumulado de gravetos e espinhos de caatinga, eis que a fotógrafa-rendeira, a "estilista da imagem" tinha operado um milagre: parecia ter pintado em alegres lápis de cor, e trazido para primeiro plano, a história cinzenta da vida de minha mãe.

"Você acredita? Isso não parece uma pintura?", ela exclamou, emocionada, "apunhalada", capturada por aquele outro modo de ver seu passado de pobreza, fome e opacidade, incrédula diante daquele tributo à arquitetura popular sertaneja.

Voltando àquele distante ano de 1992, foi por volta daquela época que escrevi para esta Folha uma resenha sobre o segundo livro de Anna Mariani. Enviei-lhe o texto antes da publicação: ela fez algumas correções, exigente, que aceitei constrangida, e teceu comentários ácidos sobre a superficialidade da imprensa, o descuido, a irresponsabilidade.

Concordei com ela, ainda que impressionada com o grau de minúcia e perfeccionismo com que queria seu trabalho abordado. Talvez Anna incluísse naquela mesma crítica este texto que agora escrevo —ela que parecia querer preservar seu nome e seu trabalho da futilidade da fama, da mediocridade, da vulgaridade do mundo das celebridades.

Nosso segundo encontro se deu quando, também na década de 1990, ela me pediu para ir conhecer Joaquim Guedes (1932-2008), o consagrado arquiteto e urbanista, amigo íntimo seu. Guedes, que se dizia meu leitor, queria saber como eu conciliava meu texto literário com a escrita em jornal.

A conversa teve algo de bizarro, porque não soube o que responder a ele, eu que tinha então 30 e poucos anos e me achava uma ignorante completa. Guedes queria aliar sua prática profissional de arquiteto com alguma atividade artística que tentava então desenvolver (pintava telas, se não me falha a memória).

Não sei o que me levou a esse escrito sobre Anna Mariani, tema tão fora da pauta jornalística. Não a via há muitos anos, nunca fomos amigas, e um abismo de classe (ela era muito rica) nos afastava também. Chamei de "retrato" isso que não passa de uma impressão subjetiva —e que também não é, nem de longe, uma análise de seu trabalho, ele que dispensa manifestações do reconhecimento que sempre teve.

Vai ver, escrevi como exercício de elaboração da morte de minha própria mãe, ocorrida também neste fatídico 2022, e pela coincidência de terem ambas nascido em 1935 e morrido aos 87 anos. Vai ver, uma morte lembrou a outra —e uma vida também, ainda que por desvios tão paradoxais e improváveis.

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