Mariliz Pereira Jorge

Jornalista e roteirista de TV.

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Mariliz Pereira Jorge

A morte de Marielle será em vão?

As pessoas que estão por trás do seu assassinato nos jogam na cara a falência total do Estado

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Desde que me mudei para o Rio, há quase seis anos, flerto com a possibilidade de nadar no mar. De nadar de ponta a ponta, em suas lindas praias quase sempre poluídas. Ontem, um amigo disse "vem que eu te mostro como é".

Dormi cedo para chegar em tempo de ver as primeiras luzes do dia e acordei antes das 5h30. Caía um chuvisco, peguei a bicicleta e rumei para Copacabana, onde muita gente faz aula logo de manhazinha.

Ainda havia muito silêncio nas ruas, poucos carros, gente chegando para correr e fazer atividade física na areia. Os barraqueiros colocando o negócio em pé, caminhão estacionado em local proibido descarregando as cadeiras para os turistas, mais alguém armando uma rede de vôlei, dois aposentados jogando futebol. A paisagem que sempre me deixa sem fôlego. A paisagem que anestesia os sentimentos. É bonito demais.

Foram quase quatro anos me perguntando como as pessoas moravam aqui. Já são quase dois que me resignei a olhar a paisagem. Parei de apontar o dedo para a violência, para a desigualdade, para a corrupção, para a falta de saneamento básico, para gente morta com bala perdida, para gente morta, para a parte pobre e feia da cidade. Acovardei-me. Finalmente pareço adaptada.

Ao chegar em Copa, percebi o mar meio nervoso e resolvi adiar minha estreia na natação. Foi quando dei uma olhada nas dezenas de mensagens no celular e nos posts que se repetiam nas redes sociais. Marielle, vereadora do PSOL, havia sido morta. "Execução", diziam algumas matérias.

Mais uma pessoa morta, entre os quase 60 mil que enchem as nossas estatísticas. Por que me senti tão devastada o dia todo? Por que me senti tão triste? Porque era uma liderança importante. Porque era uma vereadora eleita. Porque, se comprovada a morte encomendada, as pessoas que devem estar por trás do seu assassinato —durante uma intervenção federal—  nos jogam na cara a falência total do Estado em proteger qualquer pessoa, e colocam toda a população numa posição de reféns de um cotidiano violento e sem solução.​​

A morte de Marielle deveria unir as pessoas contra a corja de políticos, bandidos e milícias que destruiu o Rio de Janeiro. Mas o dia de hoje mostrou que isso está longe de acontecer. Como bem definiu um amigo, o que mais vimos foi indignação barata, politização imbecil, raciocínio torto, falta de informação, forçação de barra para encaixarem a realidade em um discurso —de ambos os lados. A realidade é uma só: estamos perdidos.

Queria acreditar que a morte de Marielle será um divisor na questão da segurança pública do Rio de Janeiro, mas a sensação é a de que nada vai mudar. Quem matou Marielle parece ter certeza disso.

Na volta para casa, pedalando pela orla da zona sul, me veio um sentimento muito ruim de que tudo vai continuar do mesmo jeito ao perceber que a vida continuava. As cadeiras e guarda-sóis na areia, as pessoas se exercitando, os bares do calçadão abrindo as janelas, o caminhão do gelo parado em local proibido, gente correndo, gente sorrindo, gente ouvindo música, o sol já bastante quente. E aquela paisagem linda. A paisagem que anestesia. Estamos perdidos.

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