Mariliz Pereira Jorge

Jornalista e roteirista de TV.

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Mariliz Pereira Jorge

Cuidado com o que você deseja

A gente reclamava tanto que o brasileiro não se interessava por política. Olha aí o que aconteceu

Saudade da época em que o Brasil se dividia por motivos que não as eleições. Briga boa mesmo era entre a turma que gosta e a que detesta coentro. Entre os que são favoráveis e os que são contra o horário de verão. Os que colocam uva passa na comida e aqueles que preferem a morte.

A gente reclamava tanto que o brasileiro não se interessava por política, que só queria saber de futebol e de Carnaval. Olha aí o que aconteceu. Agora, falamos sobre o assunto 24 horas por dia. E isso está longe de ser algo positivo. Já dizia um provérbio chinês: “cuidado com o que você deseja”. É também o nome de uma música de Noel Gallagher (Be Careful What You Wish For).

Apoiadores do candidato do PSL, Jair Bolsonaro, durante ato de apoio ao candidato na porta do condomínio onde Bolsonaro mora, na Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro - Eduardo Anizelli - 7.out.2018/Folhapress

Ninguém mais devaneia sobre o tempo. “E a eleição?” tomou o lugar de “será que vai chover?” Você está lá na sala de espera do médico, quer apenas tratar suas dores no corpo, sem trocar palavras ou olhares com gente desconhecida. Mas logo uma paciente puxa conversa com a recepcionista. Em 15 segundos o ambiente se transforma num plenário. Apenas me afundo no sofá na esperança de que não me notem. Em vão. Tem sempre alguém que não apenas quer dar opinião sobre o assunto, como exige a sua. Vou andar com uma plaquinha de isentona no pescoço, mesmo correndo risco de ser xingada. Isentona me parece melhor do que as outras alternativas.

Passei a computar quanto tempo as pessoas demoram a tocar no assunto e o recorde no final de semana foi de sete minutos. Você pisca e alguém fala mal de um candidato, defende outro. Está um dia lindo de sol, a praia cheia, e o assunto principal são as últimas pesquisas do Ibope e do Datafolha. Você convida amigos para um almoço e em cinco minutos precisa colocar um de cada lado do balcão da cozinha porque o assunto ferve mais do que a água do espaguete. 

O saldo do primeiro turno já foi negativo. Três amizades de infância perdidas, dois ex-parentes, centenas de zumbis bloqueados nas redes sociais, cinco inimigos, horas perdidas tentando convencer geral de que focinho de porco não é tomada, mas tem quem prefira acreditar porque viu na internet. E como sabemos, se está na internet, é verdade.

Tenho evitado gente que fala “Venezuela”, “comunista”, “lei Rouanet”, “ditadura”, “obscurantismo”, “retrocesso”, “fascista”, “zapzap”, “ficha limpa”, “gayzista”. Desconfio que até o final do segundo turno ficarei sozinha em minha bolha que tenta manter a sanidade e não ceder ao histerismo que reina nos dois lados. A chantagem emocional atingiu limites insuportáveis. Cada vez que alguém me olha com cara de enterro ou me encosta na parede, o outro lado me parece menos horrível.

A parte boa de tudo isso é que finalmente tem sido possível ver as pessoas em sua melhor forma “política”. Ou seja, a pior. Todo mundo passou de alienado a cientista político com MBA feito pelo Whatsapp. A gente reclamava dos milhões de técnicos de futebol que emergiam de quatro em quatro anos por conta da Copa do Mundo. Temos agora milhões de especialistas em dívida pública, em segurança e educação.

Um trecho da música de Noel Gallagher diz: “they’ve given you the key, son. But you’ll never find the door" ("eles te deram a chave, filho. Mas você nunca encontrará a porta"). A gente reclamava tanto da alienação política do brasileiro, mas agora parecemos mais perdidos do que nunca. As certezas que tenho é que adoro horário de verão, coentro e acho que tem que tacar passas em tudo, sim. São as únicas brigas que eu compro com vontade.

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