Mariliz Pereira Jorge

Jornalista e roteirista de TV.

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Mariliz Pereira Jorge

Festa da firma: o maior espetáculo de hipocrisia da terra

Ter estômago e não sorrir com desdém, para brindar e fingir contentamento, extrapola todos os limites

A pior parte de trabalhar em casa é perder o convívio diário com colegas e com superiores. Mas essa é também a melhor parte, porque quase nunca você é convidado para a festa da firma. Adoro dezembro, uma época tão festiva, a correria para tentar terminar em apenas um mês tudo o que a gente não fez o ano todo, comprar presentes para pessoas queridas.

Fico feliz com as ruas cheias, os bares lotados, a decoração mesmo que cafona de Natal, as happy hours, encontrar amigos, cumprimentar desconhecidos, desejar boas festas e depois passar janeiro inteiro saudando o que começa.

É sério. Sinto uma alegria enorme nessas coisas que a maioria diz detestar e ter preguiça, porque tem trânsito, fila, os lugares ficam cheios, os compromissos não cabem na agenda. Nada disso para mim é problema. Mas eu tinha muitas considerações em relação às festas da firma. O maior espetáculo de hipocrisia da terra.

Aquele momento em que a gente faz de conta que não detesta algumas pessoas. Pior, se esforça para passar a impressão que simpatiza minimamente com o coleguinha, que os atritos são o preço do estresse do trabalho, que lá no fundo as diferenças são conciliáveis. Não são. Pura hipocrisia. Detesto essa diplomacia forçada. E jamais tive a habilidade de fingir gostar de alguém. De fazer de conta que não desprezo gente mau caráter, folgada, sonsa, que tem mau hálito, não se veste bem, tem gosto musical duvidoso. E com o passar dos anos fui ficando cada vez pior em bancar a simpática com aqueles por quem não tenho apreço. 

Suportar a convivência durante o ano com esses tipos custa saúde, sono, equilíbrio, mas faz parte do “job description”. Ter estômago e não sorrir com desdém, para brindar e fingir contentamento, extrapola todos os limites que foram sendo destruídos ao longo de anos, enquanto passei a cultivar, no lugar de paciência, deboche e cinismo.

Como sabemos, características nada bem-vindas em ambientes corporativos. Dá muito trabalho ser debochado e cínico, custa aumentos de salários e promoções, mas garante noites muito bem dormidas. E, hoje, não tenho o menor interesse em estragar e minha fama, sendo hipócrita durante algumas horas para agradar quem não me agrada. Sem falar no risco de alguém me achar de fato fofa e querer virar amigo.

O leitor vai pensar que não gosto de ninguém. Errado. Sou do tipo que faz amizade no ponto do ônibus, mas desfaço na primeira estação, se o santo não bater, se usar perfume forte, pular a catraca, se não ceder o asento para gestante e idoso. Tenho critérios nada maleáveis em relação ao caráter do próximo. Não basta ser uma boa pessoa no Facebook e um baita dum safado quando acha que ninguém está olhando.

Em todos os lugares onde trabalhei fiz amizades que trago para a vida. Gente que certamente encontrarei para celebrar as festas. Então, é com alívio que chego a mais um fim de ano sem ter que pagar o pedágio caríssimo de sorrir e brindar a hipocrisia corporativa.

Depois de duas ou três biritas, meu instinto de sobrevivência quase sempre dá adeus e eu vislumbro a possibilidade de dizer o que não devia, para quem não poderia e deixar o climão da festa, Ó, uma merda. Tô fora.

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