Mariliz Pereira Jorge

Jornalista e roteirista de TV.

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Mariliz Pereira Jorge

Quem mandou ser estuprada?

Não importa se a pílula falhou, se a camisinha estourou, se o parceiro se recusou a usar preservativo, se foi estuprada pelo próprio marido

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Estava demorando. Mulher que decide interromper uma gravidez indesejada é chamada de assassina, vagabunda, insensível. Só faltava ser chamada de louca. Não falta mais. Um vereador em São Paulo quer que mulheres “com propensão ao aborto ilegal” sejam internadas em clínicas psiquiátricas. Porque, claro, alguém que é vítima de estupro, corre risco de vida ou carrega um feto sem cérebro só pode ser louca para não querer ter um filho nessas condições.

O vereador quer, por meio de seu projeto de lei, que a mulher só consiga abortar se tiver um alvará e depois de esperar 15 dias. Entenderam? A grávida precisa provar que não tem vocação para abortar, receber um alvará e esperar 15 dias. Não precisa se preocupar porque, como sabemos, os serviços públicos funcionam que é uma maravilha. Mais um pouco o excelentíssimo inclui um Documento de Arrecadação Estadual e pede para apresentar com autenticação mecânica, mais duas testemunhas.

Tem mais, não basta estar numa situação triste e traumática, ela deverá passar por tortura psicológica e doutrinação religiosa, onde será convencida a mudar de ideia. Depois disso vão esfregar em sua cara exames com imagens de “órgãos e funções vitais, batimentos cardíacos”, além de uma “explicação sobre os atos de destruição, fatiamento e sucção do feto”, para mostrar a qualquer maluca a barbárie que está prestes a fazer.

Quem é mesmo o louco nessa história?

Volto a dizer o que escrevi há alguns anos: há muito tempo os opositores do aborto já deixaram suas intenções muito claras —vingança. Defensores da vida querem a todo custo que uma mulher pague com um filho indesejado, porque transou, porque abriu as pernas, porque gozou, porque se divertiu. Porque a culpa de ter engravidado é só dela.

Não importa se a pílula falhou, se a camisinha estourou, se o parceiro se recusou a usar preservativo, se foi estuprada pelo próprio marido. Não importa. Essa pilantra tem que pagar, porque, né?!, quem mandou transar?

De tempos em tempos vemos projetos que pretendem dificultar o aborto em casos já previstos em lei. O Senado, por exemplo, acaba de desengavetar uma Proposta de Emenda à Constituição para proibir a interrupção da gravidez em qualquer situação. Mas dessa vez a ignorância, a falta de empatia e a brutalidade nos métodos superou os piores pesadelos. Querer tachar uma mulher como louca porque não quer ter um filho, fruto de um estupro, é uma violência tão abominável quanto o próprio estupro. Insinuar que uma mulher pode ser louca porque precisa escolher entre a própria vida e do feto é uma crueldade execrável.

Evoluímos do “quem mandou transar?” para o “quem mandou ser estuprada?”, porque na cabeça de quem apoia a proibição total (4 em 10 brasileiros) uma mulher violentada poderia de alguma forma ter evitado o estupro.

Quem mandou sair com essa saia?

Quem mandou beber demais?

Quem mandou andar sozinha da rua?

Tudo vadia. Tudo irresponsável. Agora essa: tudo louca.

Para essa gente o problema maior é ter nascido mulher. Quem mandou? Agora aguenta.

Interromper uma gravidez indesejada deve ser uma das decisões mais difíceis na vida. Nunca fiz um aborto, mas sou totalmente a favor de sua descriminalização porque é uma questão de saúde pública. Levanto bandeira, divulgo campanhas, escrevo posts, decepciono leitores, aborreço conhecidos, sou xingada, deletada e bloqueada. Faz parte. Garantir o direito de outra mulher decidir sobre seu corpo, seu futuro, sua vida é uma briga na qual vou entrar sempre.

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