Mariliz Pereira Jorge

Jornalista e roteirista de TV.

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Mariliz Pereira Jorge

O Brasil não ajuda

A gente dribla as questões pessoais, mas tem sempre uma floresta pegando fogo, uma exposição sendo censurada, um livro recolhido

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Já sei exatamente como serão os meus próximos dias, semanas e meses. Está tudo planejadinho aqui, na minha planilha mental, além da agenda de papel, do celular e do computador.

Os compromissos, os gastos, as férias, o trabalho. Tudo em detalhes. A rotina e o previsível têm lá o seu charme, entendi, afinal. O que atrapalha a minha vida tão organizada e perfeita, com as vírgulas, pingos e pontos no lugar? A vida.

A vida não colabora. A vida quer fazer as coisas do jeito dela. Derruba meus planos, meus prazos, meus sonhos. Por mais que eu insista as coisas não acontecem nem quando nem como eu quero. Vida caprichosa. Vida afrontosa. Vida golpista.

Ontem, era, claro, dia de começar a dieta. Segunda é sempre uma boa desculpa para expurgar os excessos do fim de semana e fechar um acordo com a vida de comer mais verdes, dormir cedo, me exercitar, cortar o álcool.

Então, vem uma notícia ruim. Quem pisca quando abro a geladeira em busca da rúcula? Os sedutores restos de pizza do domingo. E eu, que sou fraca e comilona, nem titubeei em trocar aquela salada nada acolhedora pela promessa de aconchego em doses de carboidrato e calabresa. De amarga, né?, já chega a vida.

Planejamento de vida
Planejamento de vida - Trendsetter - stock.adobe.com

O problema é que as notícias ruins têm sido uma constante. A gente dribla as questões pessoais, mas tem sempre uma floresta pegando fogo, uma exposição sendo censurada, um livro recolhido.

Como se não bastassem nossos próprios dramas ainda tem um sempre quentinho, embalado com a faixa presidencial. Tem mais isso, a vida dá muita rasteira, mas o Brasil também não ajuda.

O plano de ler ao menos cinco páginas de um dos dez livros que acumulam poeira na cabeceira da cama sempre é abortado para dar conta do noticiário.

E ele, como já entendi, só serve para atrapalhar o meu trato com a vida de ser feliz. Temo que um dia esse texto seja proibido numa possível coletânea porque é certo que a palavra “abortado”, independentemente do significado empregado, será considerada subversiva.

Era apenas pela causa de estar mais bem informada, mas quanto mais notícias eu leio e mais a minha pilha de livros cresce, mais ignorante eu me sinto.

Planejei um presente incrível de aniversário para meu marido. Uma viagem aos Lençóis Maranhenses. Esqueci do pequeno detalhe de que não tinha férias para brincar de Tieta. Tive que cancelar passagens de avião e hotel.

Já me arrependi diante da notícia de que um político tem um projeto fofo, que vai acabar por lotear as dunas. É melhor ir antes que vire concreto, assim como as floretas. Mas sempre tem o trabalho, os chefes, os prazos, os boletos para atrapalhar. Eu queria apenas ser romântica, mas tudo que consegui foi um preju. Quando disserem que a rotina acaba com os casamentos, acredite. É a vida.

Eu queria só dormir. Não parece muito. Não tenho e não pretendo ter filhos, o que parece quase garantia de que minhas manhas terão sempre as horas de sono que eu planejar. Não fosse um detalhe. A vida. E a obra do meu vizinho do andar de cima.

Às sete, em ponto, os pedreiros ligam a britadeira e acabam com a paz de qualquer pessoa que só queria dormir. Passo o dia negociando mentalmente com o barulho. A cada trégua tento escrever um parágrafo.

Estou com textos comprometidos, vídeos atrasados. O prazo do livro já era. Explico ao editor. Dessa vez, juro, não é procrastinação. Tudo parece dar errado no país. Mas se tem uma coisa que não falha é pedreiro em dia de obra —dos outros. E eu não posso nem reclamar, o vizinho é minha sogra.

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