Mariliz Pereira Jorge

Jornalista e roteirista de TV.

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Dinossauros e ciência

Pode parecer, mas este texto não é sobre política

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Gostaria de ter escrito esta coluna, mas foi o Alexander Kellner, diretor do Museu Nacional/UFRJ e Membro Titular da Academia Brasileira de Ciências, que tem muito mais intimidade com dinossauros.

Em 8 de julho é comemorado o Dia Nacional da Ciência, assim como o Dia Nacional do Pesquisador Científico. Para celebrar a data, foi criada a campanha #CientistaTrabalhando. Ao longo do mês, colunistas cedem seus espaços para abordar temas relacionados ao processo científico.

Sou paleontólogo e tenho estudado fósseis desde 1984. Sempre digo que toda criança passa por uma fase em que adora os dinossauros e existem aqueles que nunca deixam de ser crianças, tornando o estudo desses "répteis terríveis" (uma tradução livre de Dinosauria) uma profissão —o que é o meu caso.

Se bem que prefiro os pterossauros —répteis alados tidos como primos dos dinos. Brincadeira à parte, quando o Serrapilheira me convidou para escrever sobre o método científico na minha área, confesso que fiquei receoso. Mas quando soube que poderia falar um pouco dos bastidores da pesquisa, topei na hora e as lembranças correram soltas. Uma verdadeira viagem no tempo de quase quatro décadas!

O método científico na pesquisa dos fósseis é, em sua essência, igual ao de qualquer outra área da ciência: temos uma questão, levantamos hipóteses, procuramos dados e fazemos observações que são a base de nossas interpretações e conclusões. Novos dados surgem e podem mudar essas conclusões —sem stress ou paranoia.

Alexander Kellner, diretor do Museu Nacional/UFRJ - Maurílio Oliveira/Museu Nacional

O que talvez, no caso da paleontologia, seja diferente de outras áreas da ciência é a obtenção dos dados. Não adianta: é um processo complicado desde a coleta no campo até a análise no laboratório. Assim, resolvi contar duas histórias diferentes que vão dar ao leitor uma boa noção das dificuldades.

A descoberta do Thalassodromeus —um pterossauro de 110 milhões de anos encontrado no Nordeste brasileiro— teve excepcional repercussão e foi destaque na prestigiosa revista Science. O exemplar tem um crânio de quase 1.5 m, com uma enorme crista. Absolutamente ma-ra-vi-lho-so! Pelo menos para mim.

Quando ainda estava na fase de pesquisa, mostrei o fóssil para um repórter de uma revista de divulgação científica americana. Passei horas explicando todos os detalhes. No artigo, o repórter, ao relatar a sua primeira impressão do meu fantástico exemplar, o reduziu a "um pedaço de pedra triangular..."

Esse é o primeiro ponto que merece destaque. O objeto de pesquisa de um cientista que estuda fósseis é, por natureza, incompleto e de difícil interpretação, especialmente por pessoas que não atuam na área.

cranio
Crânio de Thalassodromeus sethi e reconstrução em vida - Maurílio Oliveira/Museu Nacional

Essa dificuldade de interpretação também pode atingir os próprios paleontólogos. Certa vez, soube que colegas europeus haviam feito uma descoberta muito bacana: a primeira ocorrência na Europa de um pterossauro tapejarídeo, grupo que havia sido descrito por mim com base em material do Brasil. Depois de um "namoro científico", fui convidado para participar na pesquisa. Lembro-me como se fosse ontem. Cheguei no laboratório do meu colega na Europa, ele apresentou o exemplar e eu não me contive:

- Fantástico! A região palatal (do céu da boca) está muito bem preservada!

- Não, Kellner. Esta é mandíbula, não a arcada superior.

Acho que podem imaginar aqueles segundos de silêncio constrangedor. Todo mundo já passou por isso e sabe como é desagradável. Até respirar fica difícil.

Então meu colega trouxe a outra metade do material. Ao examiná-lo, eu comentei:

- Muito interessante. Quando você me trouxe a primeira parte, tinha 100% de certeza de que era a região palatal. Agora são 200%!

Era uma tentativa de aliviar a tensão. Não funcionou.

Meu colega tentou argumentar. Com o exemplar em cima da mesa, de posse de lupas, começamos a discutir detalhes de anatomia. Eu era o convidado e tentei lidar com a situação com muito cuidado. Até que em um momento eu disse:

- Que tal virarmos o fóssil em 180 graus?

Resumindo: eles estavam interpretando o material de cabeça para baixo...

Meu colega, já mais convencido, pegou o telefone e ligou para o seu supervisor. Mesmo distante uns cinco metros, deu para ouvir o grito:

- Não pode ser!

Cinco minutos depois, o supervisor chegou, adentrou o laboratório empurrando a porta com veemência e conversamos diante do exemplar. Depois de 15 minutos, todos estavam convencidos do equívoco. Demos umas boas gargalhadas e fomos, no final do dia, tomar umas cervejas!

Talvez o leitor imagine que esse erro seja um tanto grotesco. Um ponto tem que ser destacado: ainda estávamos na fase de pesquisa. Mesmo que meus colegas tivessem submetido o trabalho para publicação com a interpretação anatômica errada, certamente um revisor especialista em pterossauros teria descoberto o equívoco e o trabalho teria sido corrigido.

Esta é outra faceta fundamental do processo científico: a revisão por pares! Um trabalho submetido sempre passa por uma revisão criteriosa antes de sua publicação, fase na qual erros são descobertos e corrigidos. Se forem muito graves, o manuscrito é recusado e os autores precisam fazer a uma detalhada revisão antes de submetê-lo novamente, quando passará por nova revisão.

Fiquei muito contente em participar da campanha #CientistaTrabalhando, que celebra o Dia Nacional da Ciência. Viajei o mundo atrás de evidências da evolução e diversificação da vida no passado geológico do planeta e tenho muitos outros casos para contar! Quem sabe alguma editora se anima?

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