Mariliz Pereira Jorge

Jornalista e roteirista de TV.

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Mariliz Pereira Jorge

A palavra de 2020: saudade

Uma nostalgia coletiva que aflige inclusive desconhecidos que também sentem as mesmas faltas, que vivem os mesmos lutos

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Estamos chegando à época em que os dicionários mais importantes do mundo elegem a “palavra do ano”. Pode ser uma expressão nova ou alguma que tenha ganhado relevância por traduzir o comportamento das pessoas, por ter sido repetida muitas vezes, por ter se destacado no debate público. Já tivemos “fake news”, “Brexit”, “geek”, “tóxico”, “pós-verdade”.

A concorrência é grande em 2020. Imagino que as instituições devam escolher entre “pandemia”, “isolamento”, “quarentena”, “novo normal”. Mas a palavra que eu mais repeti e ouvi durante os últimos meses foi “saudade”. É a minha eleita.

Não digo mais “oi, tudo bem?” quando mando mensagem, ligo ou faço uma vídeo-chamada. Ouço a voz, vejo a carinha da pessoa querida ou o nome pular no celular e já mando logo um “que saudade”.

Topo com imagens de lugares, de comidas, de gente e a única coisa que penso é isso, “saudade”. Das boas e das más experiências, dos mesmos horários, das mesmas pessoas, dos mesmos caminhos, dos mesmos hábitos e de tudo que eu achava que era rotina, mas era uma vida inteira cheia de movimento.

Saudade. Segundo o Michaelis, é um sentimento nostálgico e melancólico associado à recordação de pessoa ou coisa ausente, distante ou extinta, ou à ausência de coisas, prazeres e emoções experimentadas e já passadas, consideradas bens positivos e desejáveis.

Já senti muita saudade ao longo da vida, mas do jeito que ela tem se manifestado nos últimos tempos é novidade para mim. É um monte de saudade acumulada, de gente, de coisas, de sentimentos, de experiências. Não são os grandes acontecimentos que me fazem falta, mas as pequenezas do dia a dia que já não são mais possíveis. Um acúmulo de pequenas saudades de uma vida que não existe mais.

Uma saudade que não é só minha. Uma nostalgia coletiva que aflige inclusive desconhecidos que também sentem as mesmas faltas, que vivem os mesmos lutos. Saudade. Muita saudade de dar dois beijinhos em gente que acabei de conhecer e me despedir com um abraço daquela pessoa que virou amiga depois de dividir meia dúzia de chopes.

Saudade de me sentar num boteco qualquer, tomar um drink sem achar que vou morrer ou morrer de vergonha porque tem gente morrendo e eu com saudade do bar.

Saudade da janela do avião, dos finais de semana, dos almoços de domingo, do pé sujo, de sair sem destino, de fazer planos, de mudar os planos no meio do caminho.

Saudade dos caminhos, das ruas, dos atalhos, dos becos sem saída da vida. De muvuca, de lugar cheio, de aglomeração, de abraço suado, de abraço sem medo, de não ter medo, de despreocupação, de liberdade, de não pensar na vida ou em estar viva.

Minha mãe não encontro desde fevereiro. Meu pai já tem mais de ano que não vejo. Precisa ser inventada uma palavra para descrever o que sinto. Saudade já não dá conta de explicar a falta que me fazem.

Não há um dia em que eu não sinta, não sofra e não fale de saudade. Tenho vivido uma síndrome Neymar: saudade das coisas que ainda não vivi. Como se já não houvesse tempo para experiências novas. Das viagens que não fiz, das comidas que não provei, das pessoas que ainda não conheci, dos erros que não cometi, de tudo que deixei para depois porque sempre havia o depois.

Saudade de ter certeza sobre o amanhã. Cansada de viver apenas o hoje, porque o amanhã, quem sabe?

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