Os planos que fazemos com o dinheiro que não temos são os melhores. Ao descobrir que a Mega-Sena pagaria R$ 350 milhões de prêmio na virada do ano, Ligia, manicure que trabalha no salão que frequento, se pôs a planejar, entre a tirada de cutículas e a passada de esmalte, o que faria com o dinheiro.
Ligia é um sol de pessoa. Quem faz minhas unhas é Rosa, mas por um desses caprichos deliciosos da vida, quis o destino que na véspera do meu aniversário de 50 anos, Rosa estivesse ocupada e coubesse a Ligia socorrer os cantinhos dos meus dedos torturados pela ansiedade. Ligia estava de aniversário também. Dia 21 de dezembro. Só faltava dizer que o ano era de 1971. Era.
Sou dessas pessoas que acredita na ciência, em vacina, quando cientistas alertam que um cometa pode destruir a Terra, mas é irresistível não achar graça nessas coincidências, que são apenas coincidências, mas deixam a vida com muito mais graça. Continuo fiel à Rosa, uma regra de ouro jamais escrita, mas muito seguida no universo de esmaltes e acetonas, de recorrer sempre ao mesmo profissional. Enquanto Rosa cuida das minhas unhas carcomidas, Ligia é um sopro de poesia mesmo quando o tema é a realidade. Mas nessa véspera de um ano inteirinho novo, com a possibilidade de sonhar com o que o dinheiro pode comprar, resolver, amenizar, sonhei um pouco os sonhos de Ligia.
Ligia quer arrumar as casas de seus vizinhos na comunidade, dar um rumo às crianças que ficam na rua quando deveriam estar na escola. Ligia sonha em voz alta, enquanto o barulho do secador num outro ambiente se mistura às suas gargalhadas ao imaginar o que poderia o dinheiro fazer por sua vida e pela dos outros. Ela diz que não vai abandonar ninguém, muito menos as irmãs do salão. De nada adianta ficar rica e deixar os outros na pobreza, diz.
Ligia não assistiu ao filme Na Natureza Selvagem, mas gostou quando falei que "a felicidade só é real quando compartilhada", frase atribuída ao escritor Henry Thoreau, que eu mesma só conheci por meio do filme. Não sei se é essa conexão imaginária que eu criei por termos nascido no mesmo dia, mas nossos sonhos são muito parecidos apesar de termos vidas tão diferentes. Também quero resolver a vida da família, dos amigos, do zelador aqui do prédio, do Dênis, que trabalha na barraca da praia que frequento. A lista é grande.
Sem parar de falar, Ligia se empolga ainda mais quando descobre quanto o dinheiro pode render por ano, por mês, e calcula que vai poder ajudar gente todos os meses pelo resto de seus dias. Os planos que fazemos com o dinheiro que não temos são os melhores, como escrevi no começo.
Ligia não gosta de maresia, imagina que seja um horror morar de frente para o mar ou para a Lagoa (Rodrigo de Freitas). Eu concordo com ela, apesar de namorar um daqueles janelões da avenida Atlântica sempre que passo de bicicleta. Mas também penso na trabalheira que dá limpar aqueles vidros todos. Ela diz que prefere o Leblon, desde que seja a uma quadra longe da praia. Botafogo nem pensar, o bairro, segundo ela, é muito feio.
Uma colega sugere que ela monte uma rede de salões, mas trabalhar, para ela que rala desde os nove anos, está fora dos planos. Quer estudar contabilidade, um sonho de infância, fazer cursos e viajar. Pensa que nos dias em que se sentir muito entediada, vai chamar as ex-clientes favoritas, para uma tarde de unhas, champanhe e quitutes. Vai que dá uma saudade do cheiro de acetona, ela avalia. Gargalhamos.
Eu também gostaria de ganhar o super prêmio que a loteria paga nessa virada de ano, mas desde aquela tarde sonho apenas o sonho de Ligia e ficaria feliz de começar 2022 sem encontrá-la no salão. Ao me despedir, ela diz que não estará por ali. No futuro, espero receber o convite para a tarde de manicure com champanhe e quitutes, mas duvido que Ligia estará entediada. Gente que é sol não se apaga nunca.
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