Marina Izidro

É jornalista e vive em Londres. Cobriu seis Olimpíadas, Copa e Champions. Mestre e professora de jornalismo esportivo na St Mary’s University

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Marina Izidro

Denúncia de racismo em clube de críquete vira escândalo na Inglaterra

História de Azeem Rafiq faz Yorkshire perder 10 patrocinadores após pressão da opinião pública

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Não sei se você conhece ou entende de críquete. Eu moro na Inglaterra há anos e confesso que nunca achei tão interessante. Mas esta história vai além do esporte que é um dos mais populares do país ao lado do futebol e do rúgbi. É sobre como a coragem de um atleta revelou um escândalo que envolveu até o parlamento britânico e como patrocinadores e opinião pública cada vez mais ditam as regras do jogo quando instituições se calam.

O Yorkshire County Cricket Club é um dos mais tradicionais da Inglaterra. Fundado em 1863, é um Manchester United ou um Liverpool do críquete. Jogadores do clube defenderam ou estão na seleção inglesa. No condado de Yorkshire, quase 90% da população é branca. O esporte é popular em nações como Índia e Paquistão e atrai jovens com ascendência asiática.

Azeem Rafiq testemunha no Parlamento Britânico em depoimento transmitido pela TV nacional
Azeem Rafiq testemunha no Parlamento Britânico em depoimento transmitido pela TV nacional - Handout/AFP

Azeem Rafiq era um deles. Hoje com 30 anos, mudou-se do Paquistão para a Inglaterra aos 10. Jogou profissionalmente no Yorkshire de 2008 a 2018, foi capitão do time e da seleção sub-19. Só depois da aposentadoria precoce teve forças para contar o que viveu.

Ano passado, falou pela primeira vez para um jornalista sobre o que chamou de racismo institucional que quase o levou ao suicídio. Durante a carreira, sofreu discriminação de técnicos e jogadores, voltava do treino chorando. Quem sabia não fazia nada. Diziam que era brincadeira.

Depois da reportagem, o clube até abriu uma investigação, mas ela terminou um ano depois com um pedido de desculpas e ninguém punido. Melhor deixar como estava. A imprensa insistiu. Teve acesso a partes do relatório em que Rafiq dizia que tinha sido apelidado de "paki", termo preconceituoso que se referia a quem nasceu no Paquistão; que jogadores mandavam que se sentasse longe do grupo, "perto do banheiro"; que um deles tinha um cachorro preto com o nome de Kevin e chamava assim atletas que não eram brancos.

A reação foi imediata. A opinião pública ficou ao lado dele e, em poucos dias, dez patrocinadores deixaram o clube. O governo britânico começou a investigar. Só então a organização que rege o esporte, a England and Wales Cricket Board, proibiu o Yorkshire de receber partidas internacionais –outro baque financeiro– e o presidente e o diretor-executivo do clube se demitiram.

Esta semana, Rafiq falou no Parlamento Britânico em um depoimento transmitido em TV nacional. Abalado, contou episódios de racismo, o tratamento "desumano" recebido quando a esposa grávida perdeu o bebê, como se sentiu isolado e humilhado. Para o deputado responsável pelo inquérito, é um dos episódios mais perturbadores da história moderna do críquete.

Nos anos 1980, David Lawrence, jogador inglês negro, viu um companheiro de clube deixar uma casca de banana na porta do quarto do hotel onde estava hospedado antes de uma partida. Tinha 17 anos. Talentoso, chegou à seleção. Sem ninguém para pedir ajuda, sofreu em silêncio.

Hoje, se clubes tentam abafar algo errado, patrocinadores e sociedade têm o poder de dizer que não toleram o intolerável.

O disque-denúncia criado este mês por uma comissão independente para ouvir casos de racismo já recebeu mais de mil ligações. Se o Yorkshire tivesse agido, o fim poderia ter sido outro. Agora, restam a reputação destruída e um enorme prejuízo financeiro. Ao ter a coragem de dividir sua história, Rafiq queria ser "a voz dos que não têm voz." Como o clube deve estar arrependido de não ter ouvido.

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