Mario Sergio Conti

Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".

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Descrição de chapéu

A tribo hipster vai ao Caaguassu

São Paulo tem tal abundância de aberrações que nenhuma delas, por si só, chama a atenção

Ilustração de 17 de março Mario Sergio Conti
Bruna Barros

São Paulo tem tal abundância de aberrações que nenhuma delas, por si só, chama a atenção. Lugares e valores tidos até dias atrás por veneráveis dão lugar a bizarrices. E ninguém liga. Como o fato de a falsa cultura ter se aboletado no Caaguassu no último domingo (11). Onde iremos parar?

Iremos parar na avenida Paulista. A reta de quase 3 km onde ela fica era chamada de Caaguassu, "mato alto" em tupi-guarani. Foi ali que Joaquim Eugênio de Lima, uruguaio formado em agronomia na Alemanha, traçou a avenida e vendeu os lotes em torno à elite paulistana.

Inspirada no barão Haussmann, o prefeito que rasgou bulevares na Paris de Napoleão 3º, São Paulo se modernizou enquanto preservava a segregação: a Paulista foi projetada num platô arejado, mas a ralé foi tocada para a margem de riachos alagadiços e várzeas infectas.

Lévi-Strauss, que morou a uma quadra da Paulista nos anos 1930, comparou-a à avenue Foch. Ligando o Bois de Boulogne ao Arco do Triunfo, nela passaram temporadas Rothschild, Onassis, Mobutu e FHC (num apê da família de Abreu Sodré).

Na inauguração, em 1891, ninguém morava na Paulista. As benfeitorias precederam os palacetes: duas pistas largas, fileiras de magnólias e plátanos, chão de pedregulhos brancos. O transporte —sobre trilhos— era moderno, mas subdesenvolvido: burricos puxavam bondes.

Ao ganhar moradores, a Paulista abrigou poucos barões do café (Prado, Lacerda de Albuquerque). A maioria era de italianos da indústria (Matarazzo, Siciliano) e comerciantes do Levante (Jafet, Salem). Ainda sob a égide do café, formava-se uma nova classe dominante.

Plantado no Oeste Paulista, o café escoava de trem para Santos e ia para o exterior. O capital era acumulado na capital, por imigrantes que tocavam a grande indústria e o comércio atacadista. O impulso à modernização vinha do mercado mundial, da globalização.

A Pauliceia contava 65 mil almas desvairadas quando o Caaguassu virou avenida. A Grande São Paulo, um nó inextricável de 39 municípios, tem hoje 21 milhões de moradores. No domingo em que 13 das suas entidades culturais abriram as portas de graça, cerca de 1 milhão de pessoas passeou pela avenida.

As mudanças vêm de uma força avassaladora: as multidões. O decreto que baniu os carros da avenida, de 2016, foi elaborado por uma aliança de ambientalistas, universitários, ciclistas e quem mais aparecesse.

A parada, porém, foi ganha pela plebe. Já no primeiro domingo, ainda experimental, ela ocupou a Paulista da escultura do Índio Pescador, no Paraíso, até quase a casa em que morou Sergio Buarque de Holanda, na encosta do Pacaembu. Esse povo quer ir e vir a pé.

A tribo pedestre tem inimigos. Foi só Haddad anunciar o fechamento da avenida que o Ministério Público Estadual, aparelhado pelos tucanos dos porteiros à alta diretoria, se insurgiu. A Paulista, afirmou, foi "concebida e construída para a circulação de veículos". Como se a cidade estivesse condenada aos carros.

Agora que os pé-no-chão tomaram o Caaguassu, não falta quem queira pegar carona no seu sucesso. É o caso das organizações culturais. Alta cultura a Paulista teve desde que um paraibano achacador, Chateaubriand, e um fascista italiano, Bardi, se uniram para fazer o Masp.

Coisa diferente são as ricas entidades que fazem propaganda, seja de um país (Fundação Japão), de industriais sem indústria (Fiesp) ou de uma família (Instituto Moreira Salles). A cultura que se apossa da avenida no domingo é outra. Não é pretensiosa nem hipster.

Lá estão bandas, catuaba, skate, roqueiros, churrasquinho de gato, violinistas, jurubeba, camelôs, ciclistas, artesãos, pastéis e malucos. Sob um sol de amolecer o asfalto, eles substituem os executivos, os blindados, os radares e os congestionamentos dos dias de trabalho.

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