Mario Sergio Conti

Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".

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Descrição de chapéu

O filho punido

Retrospectiva de Visconti em SP exibe 17 filmes tal e qual ele quis: tela enorme  e sem os cortes impostos

Ilustração coluna Mario Sergio Conti
Bruna Barros

A primeira frase que se escuta é "Agora e na hora da nossa morte". De joelhos no chão leitoso de ladrilhos, a família repisa em latim a ladainha: Nunc et in hora mortis nostrae. Júpiter fulgurante, Marte carrancudo e a lânguida Vênus observam dos afrescos no teto a gente engalanada que reza o terço.

Um falatório na sala vizinha se sobrepõe à arenga da família rica e provinciana. Cada vez mais altas, as vozes da história acabam por abafar o rito religioso: rebeldes desembarcaram no porto, a insurreição popular incendeia a terra, um soldado morto junta moscas no jardim do Príncipe.

Assim começa "O Leopardo", em cartaz na Retrospectiva Luchino Visconti, que vai até quarta-feira (14) no Cinesesc, em São Paulo. São 17 filmes, exibidos tal e qual o cineasta quis: em tela enorme, cópias de primeira e na íntegra, sem os cortes impostos por produtores. Grande arte para o grande público.

A visão de conjunto permite avaliar essa arte 41 anos depois da morte de Visconti. Acompanha-se o trajeto do neorrealismo ao neoclássico; da trilogia siciliana ("Obsessão", "A Terra Treme", "O Leopardo") à alemã ("Os Deuses Malditos", "Morte em Veneza", "Ludwig"); da crítica à indústria cultural ("Obsessão") à sua subversão ("O Leopardo").

O fato histórico que interrompe o clã Salina é a aurora da revolução burguesa. As tropas de Garibaldi desembarcaram em Marsala e avançam rumo a Palermo. O destino dos latifundiários que há séculos dominam a província parece selado. Ainda que com retardo, o povo e o progresso chegaram à terra atrasada. Vida nova a partir de agora

A derrocada da aristocracia feudal se confunde com a decadência do Príncipe Fabrizio (Burt Lancaster) que não tem ânimo para resistir à perda de poder. Mas eis que Tancredi (Alain Delon), seu sobrinho predileto e falido, adere à revolta e galga postos na nova ordem.

"O Leopardo" se baseia no romance de Lampedusa, mas a adaptação de Visconti pende para Gramsci, do qual usa a noção de "transformismo", o tempo que não muda porque o atraso é geral.

Para Gramsci, a unificação da Itália foi transformismo: a incorporação à classe dominante de uma parte dos representantes do progresso. Na Sicília, os senhores da terra cooptaram a burguesia triunfante --e vice-versa-- para manter a exploração.

De garibaldino de primeira hora, Tancredi agora massacra seus companheiros e, sob os auspícios do Príncipe, fica noivo da bela e vulgar Angelica (Claudia Cardinale), a filha do novo chefe burguês. Num baile faustoso, se sela a aliança entre os descapitalizados e os capitalistas.

A velha classe se salva, mas a vida nova morre. Embora o reinado dos Bourbon chegue ao fim, em vez da república vem a monarquia da Casa de Saboia. A liberdade, igualdade e fraternidade subsistem como retórica. Tudo muda para que a exploração continue.

Por escrito, o transformismo pode parecer um esquema que combina a chegada tardia do capitalismo a uma sociedade atrasada pelo latifúndio, e gera nobres decadentes e trabalhadores impotentes. Com Visconti, a decadência e a impotência estão vivas.

Estão vivas na risada acafajestada da Angelica de Claudia Cardinale, No álacre cinismo do Tancredi de Delon. Decadência e impotência estão vivas, sobretudo, no conformismo amargo do Príncipe de Burt Lancaster.

O seu Salina é "O Filho Punido", título da pintura de Greuze que ele contempla durante o baile, na biblioteca. A tela mostra um pai agonizante, cercado pela parentela, no momento em que seu filho pródigo volta para casa. O Príncipe não vê no quadro o tema bíblico.

Salina prefigura, isso sim, o seu futuro, a sua própria morte, e a da sua classe, ambos inúteis no presente de pobreza material e miséria moral, que ele se recusa a enfrentar. Para o Príncipe, a punição se dá agora: enquanto há morte, há esperança.

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