Mario Sergio Conti

Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".

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Descrição de chapéu

A espiã que veio dos Bálcãs

A estrela vermelha da ex-tudista Julia Kristeva foi o topa-tudo-para-se-dar-bem

Ilustração
Bruna Barros/Folhapress

Julia Kristeva tem 76 anos e publicou 30 livros. São ensaios, romances, relatos de viagens, perfis e memórias. A opulência untuosa da sua obra importa pouco porque escritores franceses costumam ser profícuos. O charme de Kristeva é outro, semiótico.

Ela é uma suma-sacerdotisa daquilo que os americanos, para simplificar, chamam de "French theory". Linguista, desconstrucionista, psicanalista, pós-estruturalista, pegou jacaré em todas as marolinhas intelectuais do rio Sena nos últimos 50 anos.

Em termos linguísticos, Kristeva estaria mais para o sintagma que para o paradigma: a cada sufixo "ista" que atrelava à identidade, o prefixo "ex" logo pulava à frente. É uma ex-tudista de bem com a vida.

Na política, sua estrela vermelha foi o topa-tudo-para-se-dar-bem. Nascida nos Bálcãs búlgaros, ela descolou uma bolsa de estudos, chegou a Paris com uma mão na frente e outra atrás e logo estava de bate-coxa com maoístas. Foi à China da Revolução Cultural e na volta entoou loas a Mao.

Depois, juntou-se a jovens reaças da ressaca pós-68 e aderiu numa boa à boa nova neoliberal. Depois, é óbvio, encontrou Deus. Bento 16 a chamou para trocar uma ideia e Sarkozy lhe pregou no peito a Legião de Honra. O esquerdismo boêmio transubstanciou-se em beatitude burguesa.

Sua carreira indica que, quando o significante tem homofonia com o significado, os signos entram em combustão. Ou seja: os traços tártaros, as maçãs do rosto pontudas e os olhos vagamente asiáticos de Kristeva correspondem à exuberância do seu arrivismo.

Como nas neuroses, uma pulsão inconsciente levou-a a cair na boca do povo. Kristeva, presa ao passado, cismou de trabalhar numa revista búlgara. E lá os aspirantes a cargos públicos e ao jornalismo, se nascidos antes de 1976, passam pelo crivo de uma comissão da verdade.

Ela averigua se os candidatos colaboraram com órgãos de segurança dos tempos do comunismo, quando agentes búlgaros espetavam dissidentes com guarda-chuvas envenenados. Na semana passada, a comissão atestou que Kristeva foi espiã. Seu codinome era Sabina.

A comissão divulgou o seu dossiê, que tem 400 páginas. Com relatórios de 16 agentes, ele leva a crer que Kristeva espionava intelectuais nativos e búlgaros de passagem por Paris.

Em troca, os comunistas não molestavam sua família, que continuou na Bulgária. Numa carta, seu pai lhe escreveu: "O contato com as autoridades precisa ser mantido. Ele nos facilitará a vida aqui".

Um camarada espião relatou que Sabina "virou uma defensora fiel do socialismo devido à confiança que as autoridades nela depositaram, permitindo que os pais a visitassem". Kristeva retrucou com uma conspiração: "Alguém quer me prejudicar". Quem seria "alguém"?

Os seus inimigos, ao que se sabe, estão em Paris. Eles a atacam no romance "Quem Matou Roland Barthes?", de Laurent Binet, de 2015 (Companhia das Letras, 408 págs.). O livro parte de um fato real.

Barthes, o semiólogo seminal, almoçou em fevereiro de 1980 com Mitterrand, candidato do PS à presidência. Saiu e, ao atravessar a rua, foi atropelado pela van de uma tinturaria e morreu. Binet extraiu do fato prosaico uma fantasia pós-moderna: não houve acidente, e sim assassinato.

O crime foi tramado por políticos à cata da função encantatória da linguagem, recém-descoberta por Barthes, que lhes daria o condão de enfeitiçar adversários em debates eleitorais. Quem matou o estruturalista? A CIA, a KGB, a espionagem francesa, comandada por inimigos de Mitterrand?

Kristeva resplandece na trama: ela é uma agente secreta letal porque sabe sintaxe de trás para frente. Para beneficiar o torpe comunismo búlgaro, espiona o coração mágico da linguagem. A magia romanesca prefigura o passado clandestino de Kristeva, revela a realidade fictícia de seus livros.

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