Mario Sergio Conti

Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Mario Sergio Conti
Descrição de chapéu

Tem que bater nesses crioulos

Chico Buarque samba sobre a chapa quente do passado que não passa nunca

Ilustração
Bruna Barros/Folhapress
 

Quando Chico Buarque lançou "Paratodos", lá se vão 25 anos, João Gilberto ficou deslumbrado. Telefonava para quem ainda não tinha o CD e punha para tocar uma, duas, três vezes, uma única canção. Aquela em que, depois de louvar os grandes de nossa música, o poeta se gaba:

"Vou na estrada há muitos anos

Sou um artista brasileiro."

Eram os versos que repetia ao fazer coro com o CD. Logo passou a cantarolar a estrofe na qual era citado. Também ele, João Gilberto, estava entre aqueles cuja música servia de antídoto ao coração mesquinho e de bálsamo para a solidão agreste:

"Luiz Gonzaga é tiro certo

Pixinguinha é inconteste

Tome Noel, Cartola, Orestes

Caetano e João Gilberto."

Meses depois, começou a cantar "Paratodos" do começo ao fim. Sua interpretação era ímpar, irreproduzível. Cantou-a infinitas vezes madrugadas adentro. Nunca deu o trabalho por terminado. Dizia que não estava pronto e se punha a cantá-la de novo.

Não a tocou em público nem gravou. Agora não dá mais e dá dó. João Gilberto silenciou. Ainda bem que "Paratodos" continua firme e forte. Última música cantada por Chico Buarque em "Caravanas", em cartaz no Tom Brasil, ela amarra e dá sentido ao show.

Ele começou com "Minha Embaixada Chegou". Ao som alegre do chocalho e da flauta, Chico cantou: "Meu povo pede licença pra na batucada desacatar". E chamou o seu amor para a festa: "Vem vadiar no meu cordão". (Desacatar no intransitivo é coisa de letrista de mão cheia).

Assis Valente compôs o samba em 1934, e Carmen Miranda foi a primeira a cantar "Minha Embaixada". No rádio. Ao escolhê-lo para abrir o show, Chico conectou-se com tempo em que a música urbana começava a se irradiar pelo o país, e dele recebia de volta timbres diversos. Nascia um jeito nacional de levar a vida.

Ao interligar o Brasil, o rádio serviu de veículo para a indústria da música. Foi em meio ao comercialismo crasso que se firmou uma estirpe de artistas formidáveis. Músicos do povo, eles expressaram o sofrimento e os sonhos da nação. Chico se filia a essa linhagem, a de "Paratodos". Com João Gilberto calado, é o seu expoente.

Ele vestia paletó e botou um chapeuzinho malandro para fazer graça. Aos 73 anos, tem rugas verticais fundas. A voz está mais grave que no show anterior. Consciente da sua falta de molejo, arriscou uns passinhos de samba. Entoou pedras de toque —"Sabiá" e "Retrato em Branco e Preto"— com empenho comovido.

No ritmo, Chico incorporou sons que estão no ar, do funk ao rap. No tema, retornou a seus assuntos prediletos: futebol, dor de cotovelo, carnaval, a própria música, a festa dos sentidos, a vida popular. E, atento ao que ocorre à sua volta, referiu-se ao evangelho, novelas, horóscopo, pichações, orixás e à traquitana eletrônica toda: WhatsApp, Skype, Facebook.

Se o passado e o presente encontram uma forma artística à altura, dá-se a combustão épica. Ali, no palco, ela ocorreu quando Chico cantou "Caravanas". Cortante, associou os "crioulos empilhados no porão de caravelas no alto mar" a "suburbanos, tipo muçulmanos do Jacarezinho, a caminho do Jardim de Alá".

Os garotos que vão das quebradas da Maré para o Leblon descendem dos escravos que vieram de Benguela. Mas é só na arte que passado e presente viram uma coisa só: "A gente ordeira e virtuosa apela pra polícia despachar de volta o populacho pra favela ou pra Guiné". Para ela, "tem que bater, tem que matar" esses crioulos.

O sol que bate na moleira dos barões e da ralé é o de "O Estrangeiro", como alguém já disse. No romance de Camus, Mersault invoca o sol africano para explicar por que matou um árabe sem nome. Em "Caravanas", a violência lateja na pele da pátria porque o passado não passa nunca.

O Brasil harmônico e em paz, pelo qual João Gilberto lutou e cantou, continua a ser um projeto. Chico Buarque, que um dia foi unanimidade nacional, hoje é xingado nas ruas do Rio: "Vai pra Cuba, viado!" No Tom Brasil, o seu público retrucou: "Fora, Temer! Lula livre". Na estrada há muitos anos, o artista brasileiro agora samba na chapa quente.

Tópicos relacionados

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.