Mario Sergio Conti

Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".

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A Dilmíada

Chato, caricatural e apolítico, O Processo esposa o ponto de vista da petista

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Ilustração
Bruna Barros/Folhapress

A primeira leva de obras sobre a derrubada de Dilma Rousseff foi oportunista. Escritos a galope, os livros reforçaram o caixa de seus autores e adularam os vencedores. Os libelos chapa-branca serviram de escora à ponte para o futuro: vencemos o mal; agora vai.

Como a cerimônia inicial da nova ordem (caucasianos caquéticos amontoados na divisão do butim) evidenciou algo bem diverso, os livros se preocuparam em erguer um muro para separar alhos de bugalhos.

Os lava-jatistas foram encarados como coroinhas angelicais, dedicados a seus santos afazeres. Não tinham nada a ver com a missa sulfúrica oficiada pelo Vampirão. Os livros fingiram não perceber que os coros de Curitiba e Brasília entoavam a mesma ladainha.

"O Mecanismo", seriado de José Padilha, foi o exemplo extremo, por primário, dessa compartimentalização estética e ideológica. Com dramaturgia tétrica, ela exalava enxofre, mas se embasbacava com juízes de paramentos medievais, PFs de metralhadora e procuradores de Bíblia na mão, a salvo da pestilência política.

Do lado dos vencidos, os livros a princípio arrebanharam artigos afobados e impressionistas. Os articulistas arrancavam os cabelos, tamanha a indignação. Mas a repugnância era reiterada como num melodrama, com os arroubos mal disfarçando fórmulas mecânicas.

Houve exceções. "À Sombra do Poder" (Leya, 224 págs) tem revelações. Se não forma um todo abrangente e bem encadeado é porque seu autor, Rodrigo de Almeida, foi secretário de imprensa da presidente só por nove meses, ou porque ela não lhe deu confiança, ou ambas as coisas.

O registro e a análise da queda de Dilma mudam de figura com "O Processo", documentário de Maria Augusta Ramos. Com duas horas e 17 minutos excruciantes, ele está à frente, disparado, na disputa do troféu de filme mais chato do ano.

Que o filme não conte novidades, não instigue o raciocínio ou emocione, é perdoável. Mas ele não informa nem o nome das pessoas que aparecem com destaque, falando pelos cotovelos. Quem é mesmo esse sujeito de cabelos acaju fazendo demagogia? Pergunta-se o espectador que, apesar de viciado em notícias, não reconhece o tipo faceiro.

Em compensação, há imagens à beça de auroras e arrebóis brasilienses, de silhuetas de prédios de Niemeyer, de assessores fora de foco e sem som batendo papo, de excelências discorrendo sobre a alínea 435 do parágrafo 348 do código de rábulas da casa do chapéu.

Pedaladas fiscais não são um tópico que se preste à tradução técnica em discursos enfezados. Mas "O Processo" insiste em fazer desfilar uma fileira de deputados que fingem explicar a questão. Para eles, as pedaladas eram um pretexto para tirar Dilma. Logo, quanto mais complicadas, melhor. O filme não vê isso, toma o acessório por essencial.

Ou opta pela obviedade rombuda. A advogada Janaína Paschoal é ridicularizada —o que, convenha-se, é fácil de fazer. Já Temer, Jucá, Aécio, Eliseu e congêneres são observados de passagem, a uma distância respeitosa. Ou nem dão as caras.

A sessão da Câmara que destituiu Dilma, na qual senhores enrolados na bandeira mandaram um abraço e um queijo para suas crias, foi um momento insuperável da nacionalidade.

A sessão deveria ser mostrada em todas as escolas, na íntegra, no começo do ano letivo. Para que a criançada veja o barro de que somos feitos.

E o que faz "O Processo"? Mostra uns flashes mirrados da sessão no começo do filme e dá o assunto por encerrado. Joga fora o drama, a cafonice, a prostração, o atraso que serviu de motor para a destituição de Dilma. O que foi uma luta complexa e violenta virou uma sequência de cenas burocráticas.

O filme de Maria Augusta Ramos é inócuo porque prega aos convertidos. Parte do público diz "Fora, Temer!" e estamos conversados, deu-se a catarse. Ele não serve para entender o que ocorreu porque não levanta problemas ou abala crenças, é mais moral do que político.

Há uma única declaração política, a de Gilberto Carvalho, que se limita a reconhecer que o PT errou. E tome os três mosqueteiros de Dilma às tontas: José Eduardo Cardozo falando não se sabe o quê ao telefone; Aloizio Mercadante cofiando o bigode; Ricardo Berzoini com cara de paisagem.

Nesse aspecto, o filme é uma raridade. Da primeira à última cena, "O Processo" esposa o ponto de vista de Dilma Rousseff. Ela foi vítima de ataques incompreensíveis —daí o título do filme, que alude a Kafka. Mas até o título é abusivo, torto. Ele deveria se chamar "A Dilmíada".

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