Mario Sergio Conti

Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".

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Mario Sergio Conti
Descrição de chapéu Belo Horizonte

Ânsia de ir para o céu e de pecar mais na terra

Um miniguia para visitar o barroco mineiro e se deleitar com o abuso superlativo do bizarro

Ilustração
Bruna Barros/Folhapress

Aleijadinho. Não se sabe quase nada dele. Com 15 páginas, sua pífia biografia foi escrita 44 anos depois de morrer. Filho de africana e português, ele teria “os beiços grossos, as orelhas grandes, o pescoço curto”. Sua doença provinha “talvez de excessos venéreos”. Tinha escravos que, sob suas ordens e bordoadas, criaram-lhe a obra.

Barroco. A “Enciclopédia” do Iluminismo diz que a arte da Contrarreforma foi um “abuso superlativo do bizarro”. Dois séculos depois, Benedetto Croce chamou o barroco de “variação do feio” sem “nada de artístico”. Se os franceses e o italiano tivessem visto as coisas do Aleijadinho, é plausível que mudassem de opinião —para pior.

Casa dos Contos. O cubículo onde Cláudio Manuel da Costa morreu é funesto. Bambambã da província, ele era herdeiro abastado, estudara em Coimbra, versejava. Teve cinco filhos com a escrava Francisca e se meteu na Inconfidência. Bastou um dia de Lava Jato para que dedurasse os amigos. Suicidou-se na manhã seguinte.

Congonhas. Para Richard Burton, o aventureiro inglês, a ilustre esplanada dos profetas é inferior “ao mais humilde dos santuários italianos”. Em compensação, o Cristo que oferece pão aos apóstolos prova que o “ubiquitous Little Cripple” aprendera algo de anatomia.

Hora do Coroa. Programa da Rádio Itatiaia aos domingos. No último dia 29, a Hora do Coroa comemorou o centenário de Geraldo Pereira, sambista mineiro que compôs “Falsa Baiana”. Os patrocinadores eram uma ótica e a farmácia que vende o Viagra mais barato das Gerais.

Hotel Toffolo. Está na mesma família há 117 anos. Ao contrário do que aconteceu com Drummond ao fim de um dia percorrendo igrejas (“vieram dizer que não havia jantar”), serviram uma bela ceia. Se bem que, com fome igual à do poema, “comeríamos a mesa, se no-lo ordenassem as Escrituras”.

Igreja de São Francisco. Querubins mestiços tocam violino e flauta para uma Maria mulata no teto amplo e claro pintado por Mestre Ataíde. O arroubo artístico propôs uma nova América lusitana.
Igreja do Carmo, Sabará. Dezenas de cadáveres apodreciam sob o assoalho, em covas rasas. Uma hipótese: a fé era tamanha que os fiéis não sentiam o mau cheiro. Outra: como não havia esgoto nem banho, catingas e boduns do século 18 eram mais acres que os de hoje. Os mortos não destoavam da mórbida sinfonia de odores.

“Immense portions”. Oportuno alerta do “Lonely Planet”. Almoço com tutu, feijão tropeiro, torresmo, lombo de porco, ora-pro-nóbis, farofa, frango com quiabo, linguiça, couve refogada, pimenta, doce de coco, uma cachacinha e café. Haja ladeiras a subir e descer.

Manuel Bandeira. O poeta publicou há 80 anos “Guia de Ouro Preto”, prova que um bom escritor pode se sair bem numa forma menor. Bandeira e Drummond criaram as imagens literárias que puseram Ouro Preto no mapa do turismo.

Mercado de trouxas. Do dia para a noite, as obras atribuídas ao Aleijadinho pularam de 30 para 400. Na sua última grande exposição, há três anos, só 20% das peças eram autênticas. Não faltam quatrocentões que, com apliques de couro nos cotovelos do paletó, esticam o queixo para a estatueta na lareira e se jactam: “É um Aleijadinho”.

Mina da Passagem, Mariana. Descem-se 120 metros de vagoneta até o subsolo. Gerações de escravos cavaram os túneis onde crianças brancas agora brincam. Tiraram 35 toneladas de ouro. “Negros fujões” formaram ali perto o quilombo de Mombaça, lembrança de onde vieram. Para saldar uma dívida, Portugal deu a Mina da Passagem à Inglaterra. Seu ouro custeou a Revolução Industrial.

Mito fundador. O Império, os românticos, a República e os modernistas inventaram o Aleijadinho fabuloso, primeiro gênio nacional.

Museu da Inconfidência. “Toda história é remorso”, disse Drummond.

Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos. Suas paredes têm a concavidade convexa de Bernini e Borromini. Os santos do Barroco blindaram a igreja a ingerências aleijadinhas.

Oscar Niemeyer. Projetou o Grande Hotel Ouro Preto em 1938. É mais funcional que os caixotões coloniais, mais bonito que as curvas que alçaram Niemeyer nas asas da fama. O arquiteto disse desde sempre que Ouro Preto devia proibir o trânsito de carros.

“Paisagem Imaginária de Minas”. Sob um céu de cores quentes, fábricas convivem com casinhas, nuvens, igrejas, colinas. O quadro, no Museu Casa Guignard, tem os traços que Rodrigo Naves assinalou: o decorativo, o primitivo, a meiguice. O lugar-nenhum de um Brasil em suspenso.

“Voo sobre as Igrejas”. Poema em que Drummond define o barroco: “Essa ânsia de ir para o céu e de pecar mais na terra”.

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