Mario Sergio Conti

Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".

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Mario Sergio Conti
Descrição de chapéu

Por dentro e por fora da democracia

O conflito grego entre rentistas e desenvolvimentistas, entre o voto e o poder

Ilustração
Bruna Barros/Folhapress

A Europa tem uma importância mundial maior que o seu poder material devido a características históricas. A democracia foi criada lá. O capitalismo, também. Idem para a filosofia, o teatro, a teoria política e até os esportes; vide os Jogos Olímpicos.

No século passado, os maiores conflitos bélicos da história da humanidade foram gestados e se deram ali. Nas décadas do pós-guerra, porém, o Velho Continente foi o melhor lugar para se viver no planeta. Para os latino-americanos, a Europa importa.

Interessa em especial a Europa de países semelhantes aos nossos --aqueles de séculos de subdesenvolvimento, de governos incompetentes, de corrupção endêmica, de submissão aos fortes. A Grécia, por exemplo. Abstraído o seu passado, ela tem um jeitão latino-americano.

Nos últimos cem anos, houve de tudo em Atenas: monarquia, ocupação fascista, guerra civil, república, ditadura militar, presidencialismo, parlamentarismo, governos conservadores, liberais, social-democratas e de extrema esquerda.

E lá está ela: empobrecida, marcando passo, com um lugar menor na globalização, o de polo turístico. O PIB não cresceu no ano passado, o desemprego é de 23%, os jovens emigram, a Previdência é uma ruína, os serviços públicos se esfarelam.

Aluna exemplar, a Grécia faz direitinho a lição de casa prescrita pela União Europeia, o Fundo Monetário Internacional e o Banco Central Europeu --a Troika. Desde 2010, foram cinco pacotes neoliberais de dar água na boca num Alckmin desses. E a vida dos gregos vai de mal a pior.

Um livro lançado há poucos meses (não publicado no Brasil) ajuda a entender a desgraça helênica --e a nossa. É "Adults in the Room" (Farrar, Straus and Giroux, 550 págs.), de Yanis Varoufakis, que foi ministro das Finanças da Grécia no primeiro semestre de 2015.

Seis meses é um grão de areia na história grega. Mas o livro é mais que o relato do que o ministro fez e viu ao negociar um empréstimo que implicava a vida material de seus compatriotas. É um retrato sóbrio das panes da democracia quando os interesses da grande burguesia periclitam.

"Adultos na sala" foi uma expressão dita por Christine Lagarde, presidente do FMI, na hora de decidir se a Grécia deveria pedir outro empréstimo aos europeus. Como ele era impagável, não poderia haver adolescentes na sala. Varoufakis andava de moto e raspava a cabeça.

Com 54 anos, ele não era um jovenzinho ingênuo. Estudara economia no Reino Unido, lecionara na Austrália e nos EUA. Mais que o casaco de couro e as credenciais acadêmicas, ter sido eleito deputado pelo Syriza, a coligação de 13 organizações de extrema esquerda, fazia dele uma "avis rara" entre as rapinas da alta finança.

É por isso que Larry Summers, eminência parda na equipe econômica de Obama, a quem Varoufakis chamara de Príncipe das Trevas devido às posições conservadoras, perguntou-lhe, enquanto tomavam um drinque: "Yanis, você é insider ou outsider?".

Os outsiders, explicou, são os que priorizam a liberdade de dizer a verdade, ao preço de não serem levados a sério pelos chefes dos aparelhos econômicos. Já os insiders nunca revelam o que de fato pensam. Assim, têm a oportunidade, "mas não a garantia", de influir nas decisões.

Varoufakis disse que era um outsider. Acrescentou que estava disposto a estrangular o seu caráter, contanto que libertasse a Grécia da "prisão da dívida". O ministro não queria nada de revolucionário. Era apenas um desenvolvimentista.

Queria um acordo com a Troika para reestruturar a dívida nacional, para que o país tivesse um respiro e progredisse. Já a Troika, bancada por Obama, queria conceder outro empréstimo bilionário à Grécia, que desembolsaria parcelas cada vez maiores, mas nunca saldaria a dívida.

Para os países centrais, os gregos deveriam continuar presos a reformas cada vez mais escorchantes. "Adults in the Room" é, pois, o relatório de quem viu por dentro a cúpula do capitalismo. Pela sinceridade, o livro não tem paralelo na memorialística de quem passou pelo poder.

Varoufakis perdeu a parada. Quando as negociações chegaram a um impasse, o Syriza recorreu à democracia e convocou um referendo para que os gregos dissessem se aceitavam ou não outro pacote de austeridade. Mais de 60% do povo grego votou "não" à Troika.

O Syriza então disse não à democracia. O partido se livrou de Varoufakis, fragmentou-se em dissidências e assinou o acordo com a Troika. Os rentistas venceram os desenvolvimentistas e a democracia.

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