Mario Sergio Conti

Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".

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Mario Sergio Conti
Descrição de chapéu Otavio Frias Filho

Cerimônias de vida e morte em agosto

Duas festas e dois velórios no mês do cachorro louco

Ilustração
Bruna Barros/Folhapress

 Duas festas no mesmo dia é dose, mesmo num domingo. Os eventuais excessos acentuam o gosto de cabo de guarda-chuva na segunda-feira. Por isso, as comemorações de domingo passado (19) foram triunfais: houve alegria genuína, sem desregramento e ressaca. O salão de festas, no topo de um prédio em Higienópolis, começou a encher no final da tarde. O núcleo dos abraços e sorrisos era Pedro Paulo Poppovic, um homem alto, robusto e topetudo. Editor de mão cheia, ele festejava os seus 90 anos rijo como uma sequoia.

Em vez de receber presentes, ele ofereceu aos amigos "PPP - Mais um Livro", no qual a jornalista Thereza Pinheiro relata sua vida. Pena que não tenha saído numa edição comercial. Porque é interessantíssimo: PPP comandou a divisão de fascículos da editora Abril na época de ouro.

Não lhe bastaram as tiragens milionárias de Sócrates e Wittgenstein, de Dostoiévski e Goethe, os discos de Bach e Mozart. Nem que os tenha vendido a preço de banana em bancas de jornal. Pedro Paulo empregou, como tradutores e apresentadores, a fina flor da intelectualidade paulistana, então banida da USP pela ditadura.

Enquanto no congraçamento em torno de Pedro Paulo havia garçons, bufê e vinho a rodo, na outra festa cada um levou bebida e a conta foi dividida entre as dezenas de convivas. As 80 primaveras de Roberto Schwarz foram comemoradas, ruidosa e bagunçadamente, numa pizzaria em Pinheiros.

O aniversariante, nosso crítico dialético maior, estava com um cachecol azul-céu-de-inverno de parar o trânsito de pinguins no polo Norte. Deve ter ganhado umas 50 garrafas de vinho e champanhe de presente. À boca pequena, vários torciam para que as compartilhasse com amigos num futuro não muito distante.

Pedro Paulo e Roberto nasceram em Viena e têm origem judaica. E dois de seus convidados ilustres têm o mesmo prenome: na cobertura de Higienópolis, Fernando Henrique Cardoso; na pizzaria de Pinheiros, Fernando Haddad. Os quatro frequentam as mesmas bolhas.

"Bolha" no sentido dado por um amigo na pizzaria: "Vai tudo bem na nossa bolha". De fato, na bolha da ala tucana que empina o nariz para Alckmin, e na da esquerda crítica, todas as tendências estavam representadas nos regabofes —e felizes da vida.

Surdamente, contudo, dois rumores ensombreceram semblantes festeiros: Otavio Frias Filho e Dora Paes estariam nas últimas. Foi preciso encher o copo outra vez para enfrentar as más notícias, que se confirmaram na terça-feira, quando ambos morreram.

É improvável que Otavio e Dora tivessem ido às festas de domingo se estivessem bem. Ele, por não frequentar poderosos — e nelas havia ex-ministros, parlamentares, professores, artistas, numes tutelares. Ela, porque sua bolha era a das crianças órfãs, das mães solteiras, dos velhinhos esquecidos, dos desvalidos.

No entanto, vários dos que foram às duas festas domingo estiveram no velório de ambos. A consternação era autêntica, palpável. Dora e Otavio —de resto incomparáveis entre si— encarnaram virtudes talvez obsolescentes: a modéstia, a curiosidade, a entrega total a seus afazeres e afetos.

Muito se escreveu a respeito de Otavio, de diferentes aspectos da sua personalidade. Mas vale relembrar a sua curiosidade. Se pouco falava de si, cravava os interlocutores com perguntas incessantes. Precisava entender o que os outros pensavam, quem eram.

Certa vez, quis conhecer Frei Betto e jantaram no La Casserole. Uma hora lá, perguntou onde o outro morava. Ficou intrigado com a resposta: num convento. Tantas foram as indagações, tanto Otavio voltou ao assunto, tanto insinuou, que Betto o levou, já de madrugada, conhecer o convento dos dominicanos, nas Perdizes.

Noutra ocasião, ouviu falar de José Luiz de Magalhães Lins, o mítico e misterioso banqueiro que seu pai admirava. No dia seguinte, ligou para ele. Dois dias depois, pegou o avião e foi ao Rio. Só para conhecê-lo.

Dora Paes correu o risco de ficar paralítica na mocidade. Venceu a doença por meio da dança, tornando-se uma grande bailarina e, ao aposentar-se, uma professora de ginástica espevitada e disputada. Foi casada durante décadas com o poeta e ensaísta José Paulo Paes e falava de igual para igual com os totens da cultura que os visitavam.

Mais: convencia-os a aderir a suas inúmeras atividades em benefício dos pobres e dos fracos. Sua aguda consciência social tinha uma urgência contagiante. Morreu com 86 anos. Fumava feito uma chaminé, como Otavio até três anos atrás, quando deixou o hábito.

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