Mario Sergio Conti

Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".

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Mario Sergio Conti

O sadismo e a tortura revisitados

Idas e vindas da Experiência de Stanford, um caso clássico da psicologia social

Ilustração
Bruna Barros/Folhapress

A Experiência de Stanford é conhecida até por quem não sabe direito do que se trata. Em 1971, um professor de psicologia reuniu 22 voluntários no subsolo da universidade americana e simulou o ambiente de uma prisão. Aleatoriamente, dividiu-os em "detentos" e "guardas". Queria observar como gente "normal" se comportava num presídio durante duas semanas.

O experimento teve que ser interrompido já no sexto dia. Espontaneamente, os que faziam o papel de guardas viraram sádicos. Os prisioneiros corriam perigo. Philip Zimbardo, o professor, chegou à conclusão: o ambiente faz com que pessoas sensatas torturem.

A Experiência chegou à imprensa antes mesmo de ser um artigo acadêmico. Dias após ser encerrada, ela foi contada pelo Washington Post. Ganhou quatro páginas da revista Life pouco depois, no número cuja capa foi a inauguração da Disney World. Daí pulou para as tevês americanas, a imprensa europeia, documentários e filmes de ficção.

A repercussão foi parecida nos meios científicos. A Experiência figura há 27 anos no livro de introdução à sociologia de Anthony Giddens. Está em 68 dos 100 manuais de psicologia mais usados em faculdades. Zygmunt Bauman citou-a para sustentar a tese, de Hannah Arendt, sobre a banalidade do mal. Aos 85 anos, Zimbardo é uma sumidade.

Seu livro sobre Stanford, "O Efeito Lúcifer", chegou à lista dos mais vendidos. Professor emérito, ele ganhou a medalha de ouro da Associação Americana de Psicologia.

Disse que as torturas infligidas por soldados americanos na prisão de Abu Ghraib comprovavam a Experiência. Defendeu, na revista Psychology Today, que Trump é um caso clínico.

Foi há poucos meses, porém, que o clássico da psicologia social chegou com força avassaladora à França. O título do livro do economista e pesquisador Thibault Le Texier é taxativo: "História de uma Mentira - Enquete sobre a Experiência de Stanford" (Éditions La Decouverte, 293 págs.).

Le Texier demonstra que Zimbardo desconhecia o universo carcerário —entrara numa cadeia apenas uma vez. Criou uma que nada tinha a ver com as de verdade. Orientou os "guardas" a serem agressivos e exerceu o papel de diretor da penitenciária fictícia. Norteou a pesquisa para conferir aura científica ao que, sem base empírica, supunha.

Para que experiências sejam científicas, é obrigatório que o pesquisador não interfira, que deixe os fatos acontecerem. Zimbardo manipulou sua pesquisa do começo ao fim. Criou um cenário para demonstrar uma tese.

É por isso que já no segundo dia de funcionamento da sua prisão, antes que qualquer coisa de relevante ocorresse, escreveu que o experimento comprovava que as penitenciárias precisavam ser reformadas.

A Experiência estava mais perto do teatro didático do que da ciência.

Por fim, para que uma experiência se transforme em verdade científica é preciso repeti-la inúmeras vezes. E que sempre produza os mesmos resultados. Nas mesmas condições e com controle externo. A Experiência de Stanford não foi repetida nunca.

"Histoire d'un Mensonge" averigua porque a imprensa e as universidades a encamparam. É uma história cultural que começa com as próprias fontes de Le Texier. Ele não fez nenhuma descoberta mirabolante: a espinha dorsal de sua pesquisa são os arquivos de Zimbardo, depositados em Stanford e públicos desde 2011.

O contexto histórico explica alguma coisa. No dia seguinte ao fim abrupto da Experiência, seis pessoas foram mortas numa tentativa de fuga da prisão de San Quentin, na Califórnia. Três semanas depois houve o motim na prisão de Attica, em Nova York, na qual morreram 39 pessoas.

A Experiência de Stanford serviu de apoio para que a imprensa tentasse explicar, e dramatizasse acriticamente, a situação nas prisões. Mas, no âmbito da academia, houve contestações. O psicanalista Erich Fromm, por exemplo, foi um crítico de primeira hora.

Ele escreveu a Zimbardo: "Você não simulou uma prisão normal; a sua está bem além do que se passava em campos de concentração nazistas". A pressão por verbas, contudo, fez com que as universidades fizessem vista grossa para as artimanhas da Experiência —que tanta repercussão teve e tem.

Somos todos torturadores em potencial? "Não sei", respondeu Le Texier. "Mas sei que a Experiência de Stanford não demonstra isso." Já Zimbardo, perguntado sobre "História de uma Mentira", disse: "Não quero perder tempo defendendo a Experiência. A defesa é a sua longevidade". Longevidade, porém, não é ciência.

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