Mario Sergio Conti

Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".

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Descrição de chapéu
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Há gente nas fábricas de tudo e nada

Um livro e um filme recriam a experiência do trabalho industrial

Ilustração de Bruna Barros na coluna de Mario Sergio Conti de 13/10/2018
Ilustração de Bruna Barros - Bruna Barros

Os lustres e lâmpadas. As roupas. O chão. Os tijolos, o concreto e a tinta nas paredes. O computador e o papel do jornal. Os sapatos, o tapete, a janela, a cortina e a cadeira onde você senta. Tudo que está ao seu redor tem algo em comum: foi feito numa fábrica.

É com enumeração semelhante que Joshua B. Freeman começa “Behemoth: A History of the Factory and the Making of the Modern World” (Norton, 427 págs.). Behemoth é o monstro medonho da Bíblia, e o livro o associa ao lugar que moldou o mundo moderno —a fábrica.

Historiador e professor em Nova York, Freeman vem de uma família de trabalhadores na indústria. Talvez isso explique os laivos de nostalgia de “Behemoth”: perdeu-se algo de crucial quando a fábrica deixou de organizar o trabalho e a vida das pessoas.

Em 1960, 24% da força de trabalho americana era operária. Hoje, é de 8%. Mas como é o homem que cria valor, e não as máquinas, aumentou o número de proletários noutros países. Na China, 43% dos trabalhadores ralam em fábricas.

“Behemoth” conta uma história global. O livro esmiúça as fábricas mastodônticas, as modelares. Começa com os teares ingleses do século 18 e vem até a Foxconn, na China, que emprega quase 400 mil operários e faz iPhones, PlayStations, Kindles, câmeras GoPro, computadores Dell e HP.

É uma história de racionalização do trabalho, de incremento da produtividade e de barateamento de mercadorias, tornadas acessíveis aos sem posses. É também um relato de lutas porque, na regra, fábricas significam aumento da exploração e dos conflitos sociais.

No cerne da história está Henry Ford. Ele montou a primeira linha de montagem, a do Modelo T, que empregou 112 mil pessoas. Fabricado antes em 12 horas, um carro passou a ser feito em 90 minutos. O preço do Ford Bigode baixou a ponto de que quem o fabricava pudesse comprá-lo.

Ford se tornou um queridinho à esquerda e à direita. John Reed, autor de “Os Dez Dias que Abalaram o Mundo”, o elogiou. Céline visitou a Ford e incluiu sua linha de montagem no romance “Viagem ao Fim da Noite”.

A autobiografia do empresário foi best-seller na União Soviética dos anos 1920. Nela, Ford escreveu que aplicava leis econômicas descobertas por Marx. Ele ajudou Stálin a projetar uma megafábrica de tratores —e vendeu-lhe máquinas sucateadas como se fossem novas.

Nem todos aderiram à febre fabril. Em “Admirável Mundo Novo”, Huxley fez com o fordismo uma distopia sinistra. Chaplin parece ter lido “O Capital” quando, em “Tempos Modernos”, ataca as fábricas: “O trabalhador utiliza a ferramenta; no capitalismo, é a máquina que o usa”.

“Behemoth”, que será publicado no Brasil no ano próximo ano, termina com um capítulo sobre a Foxconn, a mamutesca fábrica cujo dono é de Taiwan, mas opera na China. Houve lá uma onda de suicídios: os operários chegam a trabalhar 14 dias seguidos, fazendo 100 horas extras.

Trabalham feito mulas e ganham menos da metade que seus símiles nos países ricos. Quando da onda de suicídios, a Foxconn cercou as sacadas de onde operários se jogavam para a morte. Obrigou-os a assinar um contrato pelo qual ela ficava isenta de punição, caso se suicidassem.

Maravilhas do livre mercado, do empreendedorismo e da invenção tecnológica, as empresas ocidentais, Apple à frente, jamais deixaram de se abastecer na Foxconn. A ditadura chinesa, por sua vez, continua a proibir a sindicalização —na fábrica e em todo o país.

Para ela, ter empregos importa mais que o trabalho infernal. Do ponto de vista dos operários, o mesmo problema se coloca. O que é melhor, trabalhar para morrer, e não para viver, ou estar numa fábrica?

Tais questões são o tema de “A Fábrica de Nada”, em cartaz em São Paulo. Caso raro no nosso panorama cultural, o filme tem três singularidades. Feito em Portugal, tem quase três horas de duração e é esteticamente intrigante, o que lhe confere enorme vitalidade.

O filme parte do fechamento de uma fábrica de elevadores Otis, nos arredores de Lisboa. Ele investiga a reação dos operários e de suas famílias, das chefias e dos sindicatos. Usa elementos de documentários, melodramas, metalinguagem e até de musicais.

Há discussões econômicas e políticas, explosões emocionais, dificuldades do cotidiano. Como a situação dos trabalhadores é complexa e semovente, “A Fábrica de Nada” não traz soluções.

O que faz é apresentar gente real com um problema premente. No Brasil, segundo o IBGE, quase 14 mil fábricas fecharam em três anos, até 2016.

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