Mario Sergio Conti

Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".

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É assim que o mundo acaba

Sem estrondo, mas com gemido, a poesia de T. S. Eliot em nova tradução

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“Roma”, dirigido pelo mexicano Alfonso Cuarón, é um dos filmes mais falados dos últimos tempos.

Ganhou o Leão de Ouro, em Veneza, mas poucos admitem que seja de fato cinema, já que foi produzido e é exibido pela Netflix, uma plataforma para TV. Passou em poucas salas, por exigência burocrática, só para concorrer ao Oscar.

Deixando de lado a querela sobre o fato de “Roma” ser cinema ou televisão, e mesmo seus eventuais méritos, o filme tem um detalhe significativo. Nos créditos finais, uma palavra misteriosa é repetida três vezes: “Shantih shantih shantih”. Em sânscrito, o mantra quer dizer “a paz que ultrapassa a compreensão”.

Fora do âmbito do misticismo hindu, a fórmula se tornou um pouco mais conhecida no Ocidente por ser também o último verso de “The Waste Land”, o poema de T. S. Eliot publicado em 1922. Numa nova tradução para o português, feita por Caetano Galindo, ele agora se chama “A Terra Devastada”.

Esse marco da literatura modernista é o carro-chefe do recém-lançado “Poemas” (Companhia das Letras, 438 págs.), um bonito volume em capa dura e —como deveria ser obrigatório em poesia— bilíngue. 
Tanto no filme de Cuarón como na tradução de Galindo, Eliot adquire, para bem e para mal, a pátina de um clássico.

Ilustração
Bruna Barros/Folhapress

Quer dizer: “Shantih shantih shantih” tem uma generalidade solene e talvez vazia, que no entanto capta algo do tempo que presidiu a publicação do poema —uma aspiração que não se realizou e segue meio viva, meio morta. Posta numa redoma, a poesia de Eliot perdeu a acidez, a capacidade de criticar e de chocar. Mas fala.

Construído com centenas de citações, “A Terra Devastada” é uma colagem de ruínas poéticas e filosóficas. Evidencia a falência da civilização na  Primeira Guerra, de 1914 a 1918. Eliot criou uma linguagem, experimental e de vanguarda, para dar conta da situação. Fez uma ode caótica ao caos.

Até a guerra seguinte, a de 1939–1945, o poeta flagrou por dentro, na linguagem, a debacle da classe dominante. Mas, crescentemente, alterou as ênfases —sua poética se tornou mais branda conforme adotava as crenças da direita tradicional: anglocatólica na religião, classicista na literatura e monarquista na política.

No pós-Guerra, Eliot foi canonizado. Ganhou o Nobel e posava de oráculo. Ao morrer, em 1965, sua reputação soçobrou. Houve primeiro a edição fac-similar de “A Terra Devastada”. Ela demonstrou que, sem a pesada intervenção de Ezra Pound, o poema seria lasso, derramado, confuso.

Depois veio o livro de Anthony Julius, “T.S. Eliot, Anti-semitism and Literary Form”. Ele demonstrou que o seu antissemitismo não era marginal ou um “sinal dos tempos”. Ao contrário, pulsava no coração de sua poesia. Julius defendeu que, apesar do preconceito, Eliot era um grande poeta. Houve uma imensa polêmica.

Por fim, foi publicado “Inventions of the March Hare”, com quase 50 poemas de juventude de Eliot. Não é que sejam grande coisa. São poemas escancaradamente obscenos, sadomasoquistas, misóginos e racistas.
No mesmo período, ruiu a noção de cânone —a ideia que uma plêiade de autores 
machos, brancos e ocidentais, nas faculdades de letras mundo afora, servia de guia para os estudos literários e, indiretamente, dava estofo a noções como “bom gosto” (na verdade, um instrumento de opressão ideológica).

Ainda que não desse para dizer que Eliot era um mau poeta, não dava para defendê-lo com tranquilidade.

Parecia embalsamado em definitivo. Até que o pop o salvou. Com base nos versos de “O Livro dos Gatos Sensatos do Velho Gambá”, que Eliot fez para os sobrinhos, Andrew Lloyd Weber compôs “Cats”.

O musical foi visto por mais de 70 milhões de pessoas em 30 países. É de um comercialismo esfuziante, mas seus versos funcionam.

Eliot os escreveu à maneira de Edward Lear, e se saiu bem no nonsense. O atroz é a mistura que Lloyd Weber faz do humor dos gatos com a seriedade de “Quatro Quartetos”, afora a música melosa.

Das tantas idas e vindas da reputação de T. S. Eliot resulta que, hoje, o inventor modernista, o poeta incompreensível e genial é mais conhecido como autor de um musical da Broadway —como autor de um espetáculo mecânico, infantiloide e feérico.

Em “Poemas”, Caetano Galindo traduziu “A Terra Devastada”, “Gerontion”, “Os Homens Ocos” e “Quatro Quartetos”. Justapôs os grandes poemas do modernismo aos versinhos sobre gatos, que traduziu na íntegra e encerram o volume. O seu Eliot é para os dias de hoje.

É assim que o mundo acaba.

Sem estrondo, num gemido.

Shantih shantih shantih.

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