Cracolândia no centro de Favelândia. Gente e pizzas jogadas no chão. Pessoas perfumadas, com estolas de pele, saem de um concerto de harpas.
Antes de embarcar em blindados ou liteiras, falam à plateia.
Sandy: Toda história até hoje é a história da luta de classes.
Junior: Senhores e escravos, patrícios e plebeus, nobres e servos, burgueses e trabalhadores —opressores e oprimidos viveram em conflito.
Leandro: Como os antagonismos foram simplificados ao máximo, a oposição se dá agora entre duas classes irreconciliáveis.
Leonardo: Traficantes e drogados?
Marx: Facebook e Google contra o resto?
Engels: A Ambev versus cervejeiros de todos os países?
Sergio Moro: PCC, PT e Comando Vermelho contra pessoas de bem?
Marcola: Esqueceu-se das milícias e do baixo clero, urubu malandro?
Carluxo despeja a metralhadora na plateia e urra: É nóis!
FHC: Não é nada disso, gente de maus bofes (à parte: mas melhor que os lamentáveis lulopetistas). A contradição determinante se dá entre os que pedem e os que entregam pizza, os motoboys.
Paulo Guedes: O augusto príncipe dos sociólogos louva nossa utopia —a sociedade desregulada na qual uns levam e outros comem pizza. Graças à nova Previdência, os motoempreendedores irão ralar até caírem mortos no asfalto —jovens, para não onerarem o Estado micro.
Max Horkheimer: O jovem trabalhador na sua moto tolera o trabalho porque curte a barulheira do escapamento. Está na fase anal.
Theodor W. Adorno: Não se pode misturar prazer e trabalho. A felicidade subjetiva é, até ela, ideologia.
Horkheimer: Liberdade é não ter que trabalhar. A sociedade harmônica que acaba em pizza é uma utopia brasileira.
Adorno: O Brasil é louco e racional ao mesmo tempo. É inimaginável um país no qual a exploração é intensificada até a insanidade sem que surjam forças objetivas de contestação.
Caminhoneiros, vestindo coletes amarelos, precedidos por motoboys, cruzam o palco e berram: É nóis! É nóis! É nóis!
Walter Benjamin: A ideia de que a sociedade possa ser diferente do que é ocorre apenas aos humanos. Mas os brasileiros pertencem à espécie?
Marcuse: A bozo-burguesia desenvolvimentista criou o iFood, o PFL e o Rappi para extorquir mais-mais-valia do mercado motoboy.
Adorno: A liberdade não é a liberdade de acumular. A liberdade só existe onde já não há necessidade de acumular.
Ministra Damares, num tomara-que-caia rosa-choque: É preciso negar o conhecimento e abrir espaço para a fé.
José Arthur Giannotti, de fraque azul-cerúleo: Quem disse isso, antes da ministra, foi Kant. É por essas e outras que a balbúrdia Bolsonaro contribui para o avanço do capitalismo bestial —e do Brasil idem.
Olavo de Carvalho, babando: Eu sou o Quincas Borba da nova era! O Brás Cubas do apocalipse! Carlos Lacerda redivivo! Paulo Francis cuspido e escarrado! O narrador machadiano reloaded: manhoso, cruel, boçal!
Edir Macedo, de turbante: Só Bolsonaro é grande, e Olavo é seu profeta.
Onyx Lorenzoni, nu numa banheira vermelho-rubi: Um bom banho de sangue comunista nos limpará de
quaisquer pruridos.
Isaac Babel: O anticomunismo é o iluminismo dos idiotas.
Bolsonaro, agitando uma bandeira da Tradição, Família e Propriedade: O Brasil se preparou durante cinco séculos para minha Presidência. Botarei nossas histéricas tradições em ordem.
Hamilton Mourão, fantasiado de Bonaparte: Heróis matam, vide Ustra.
General Augusto Heleno, fantasiado de Mourão, sentado numa pilha de carniça haitiana: O bonapartismo anuncia a boa nova do fascismo.
Mourão: Os brasileiros esquecem. A cada nova geração é preciso dar-lhes choques nos genitais e arrancar suas unhas com alicate. Para que aprendam a se comportar. Para que trabalhem e sejam felizes.
Fantasiada de Ustra, Michelle fala ao celular, em libras: Uma meia mozarela, meia calabresa.
Marcela: É pra já, madame.
Ela põe a pizza e R$ 500 mil na mala de um motoqueiro, que acelera e empina a máquina: Motoboys de todos os países, uni-vos!
De toga, como Nero, e dedilhando uma Kalashnikov, Bolsonaro toma a pizza e a mala do motoboy: Depois de mim, o dilúvio!
Um golden shower tsunâmico cai sobre a plateia.
Pano rápido.
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