Mario Sergio Conti

Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".

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Mario Sergio Conti

Bíblia de pedra, passado e memória

Momentos de um templo gótico feito de tempo e arte, de povo e fogo

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De 1300 a 1318. Jean Ravy e seu sobrinho Jean Le Bouteiller esculpem os painéis de madeira em volta do coro de Notre-Dame. Contra um fundo dourado de glória, contam em alto-relevo a vida de Jesus —da Anunciação à Ascensão. O Massacre dos Inocentes é a passagem proeminente.

As figuras, pueris e chapadas, vão num átimo da anedota ao drama. De vestido azul-marinho cravejado de estrelas, Maria se gaba da gravidez. Uma mãe enfia o dedo no olho de um miliciano, que ataca seu nenê com o sabre.

Século 14. O tio e o sobrinho esculpem a si mesmos num canto dos painéis: são meros figurantes. Sua obra multicolorida é das mais queridas de Notre-Dame. Na Semana Santa, servia de modelo para encenações da Paixão ali perto.

Janeiro de 1793. Luís 16 é guilhotinado, as missas são proibidas e a turba saqueia o templo. Como altezas não podiam ter cabeça, degolam os Reis de Judá, as 28 estátuas que, acima das três portas de entrada, atravessam a fachada de ponta a ponta.

Maio de 1804. Bonaparte é sagrado Napoleão 1º em Notre-Dame. Impede que Pio 7º o coroe porque não é rei por direito divino, mas a espada do Império. Põe ele mesmo a coroa na cabeça e o papa apenas o benze. Teria dito a José, seu irmão: “Se nosso pai nos visse...”.

Como as cabeças dos Reis de Judá sumiram, novos crânios foram fixados nas estátuas durante a Restauração napoleônica. Em 1977, 21 das cabeças originais foram descobertas, enterradas no pátio de uma mansão parisiense. Estão no Museu de Cluny, ao lado da Sorbonne.

Ilustração
Bruna Barros/Folhapress

Março de 1831. Victor Hugo publica “Notre-Dame de Paris”. Na terceira parte do romance, escreve: “Cada pedra do venerável monumento é uma página não somente da história do país, mas também da história da ciência e da arte”.

A catedral de Paris vira marco nacional, síntese de tecnologia e estilo, e não mais eflúvio da divindade. O romance acentua o coletivo —que abarca da bela Esmeralda ao grotesco Quasimodo— cujo ápice é a massa andrajosa do Pátio dos Milagres: os miseráveis que aspiram aos píncaros góticos.

Outubro de 1895. Notre-Dame é o lugar predileto de Freud durante sua estadia em Paris, para estudar histeria e hipnose com Charcot. “Nunca vi nada tão comoventemente sério e sombrio”, escreve.

Fevereiro de 1905. Proust publica sua tradução de “A Bíblia de Amiens”, de John Ruskin. Com um prefácio copioso e infindáveis notas de rodapé, consolida sua concepção das catedrais: Bíblias de pedra, arte coletiva, espaços estéticos onde o tempo se condensa e é apreendido.

Mas vem a considerar “À Procura do Tempo Perdido”, seu romance-catedral, como arte subjetiva, e não a expressão, ao longo dos séculos, da confraria infinita de artesãos, de curas, de esnobes e de crentes —a expressão de um tempo e de um povo.

Agosto de 1944. Para comemorar a libertação de Paris na véspera, De Gaulle vai de carro conversível a Notre-Dame. É recebido a tiros por colaboracionistas. Entra na igreja e assiste à missa.

Julho de 1989. No bicentenário da Revolução, André Conti, com sete anos, vê a Morte dos Inocentes em Notre-Dame. Pergunta se, como os bebês que Herodes mandou matar, também ele é primogênito.

Outubro de 2002. Lina Conti, com três anos, visita o templo gótico e, no colo, percorre os painéis em torno do coro. Sentada num banco da igreja, conta depois que o único bebê que conseguiu fugir, a cavalo, foi Jesus.

Fevereiro de 2003. Num fim de tarde frio em Notre-Dame, Gérard Depardieu declama trechos das “Confissões”, de Santo Agostinho. A atriz Aurore Clément, a primeira-dama Bernadette Chirac e Guillaume, filho do ator, prestam atenção ao que ele diz.

E Depardieu diz: “Se nada passasse, não haveria tempo passado; se nada sobreviesse, não haveria tempo futuro; se nada fosse, não haveria tempo presente”. A palavra “tempo” dá voltas e mais voltas pelo vazio imenso. O objetivo do tempo é deixar de ser. O da catedral, também.

Janeiro passado. Em viagem profissional, André visita Lina em Paris. Almoçam no Train Bleu, vão à mostra de Sergio Leone na Cinemateca e passeiam por Notre-Dame. Ficam um tempão vendo a Vida de Jesus.

Segunda-feira. Do ônibus, Lina percebe as chamas e manda a mensagem antes que a notícia tome o mundo: “Notre-Dame está pegando fogo!”. O post de André chega pouco depois: “Sensação de fim do mundo”.

Quarta-feira. Laurent Prades, administrador do patrimônio de Notre-Dame, um dos primeiros a entrar na igreja depois do incêndio, anuncia: “A parede do coro está salva”.

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