Mario Sergio Conti

Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".

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Vozes, sopros e cordas no Gólgota

Música avançada e mitos arcaicos em 'A Paixão Segundo São Mateus', de Bach

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O ensaio geral de “A Paixão Segundo São Mateus”, na quarta-feira passada, na Sala São Paulo, começou às 10h30 e terminou às 16h. Radiante com o resultado, Nathalie Stutzmann, uma maestrina francesa de 53 anos, cobriu de louvores a orquestra e os cantores.

“Não importa se você é crente ou não”, disse ela. “O Bach que acabamos de tocar arrebata a todos.” Os músicos responderam aos elogios da regente com um veemente bater de pés no chão. Na véspera do seu 292º aniversário, “Segundo Mateus” reconfirmava sua força.

Num outro abril, o de 1727, o oratório foi regido na sua estreia pelo próprio Bach, em Leipzig, na Igreja de São Tomás. Não há registro do que ocorreu ali, no coração da Alemanha, mas é possível que devotos tenham ficado boquiabertos com a peça. Opulenta, ela empalidece hipérboles.

Ilustração
Bruna Barros/Folhapress

Com quase três horas, é a obra mais longa de Bach. Requer duas orquestras e três coros, um deles de crianças, e meia dúzia de cantores. Mais do que exaltar a divindade, as vozes, sopros e cordas dão forma à angústia dos ouvintes. Levam a música ao nunca antes ouvido.

Se a sua função é litúrgica, já que composta para a Sexta-Feira Santa, a “Paixão” escapa à forma medieval. Não obstante, ela tem como guia os capítulos 26 e 27 do Evangelho de Mateus, acrescidos de árias inspiradas no hinário luterano.

A trama é conduzida pelo Evangelista. Ele relata a última janta; o beijo hipócrita de Judas; apupos da turba que escarra no Nazareno; a tripla mentira de Pedro; a perplexidade de Pilatos; os tormentos e a agonia do Verbo que se fez carne —direto do Gólgota para a Sala São Paulo.

Centro de gravidade do drama, o Messias é soturno. Um halo de violas e violinos cinge sua fronte todo o tempo. A comoção que provoca é paradoxal, pois que comedida: é um Salvador que não salva. Já o Evangelista é um contador de histórias seco, distante da desgraça.

A virtude que encorpa “Segundo Mateus” é a diversidade das gentes. Cada corpo vocaliza dúvidas, ânsias e inquietações singulares. Cada qual canta sua verdade. Assim, a música aponta para o que viria a ser a ópera iluminista; não se ajoelha diante dos dogmas do credo protestante.

Talvez por isso “Paixão” tenha ficado um século enfurnada em Leipzig, onde seu criador a burilou até morrer. Quem a tirou de lá foi Mendelssohn, que em 1829 a regeu em Berlim. Só aí a opus magnum de Bach entrou no cânone modernista, onde deveria ter estado desde sempre.

Porque a sua polifonia atravessa o tempo. Embora os protagonistas falem de dentro do mito cristão, suas aflições são entoadas em árias de aqui e de agora. A “Paixão” mostra em música que o presente é amoldável, que ação e arte podem mudá-lo, e muito.

É o que se verifica na sua ária mais famosa, a 39 (“Erbarme dich, mein Gott”), na qual violino e voz dialogam para pedir piedade a Deus. A melodia pode ser a mesma, mas a voz humana, entrecortada, permanece aquém da macia fluência do violino sublime.

Ainda assim, canto e cordas trocam de posição várias vezes entre si: quem conduz e quem segue? Quem lidera? A tristeza inexcedível da ária 39 decorre da tensão entre aspiração e contingência. Nada mais moderno que mimetizar a tensão na harmonia precária da música avançada.

A arte de Bach, sobretudo a das duas “Paixões” (“Segundo João” foi apresentada em São Paulo no ano passado), está no âmago da dialética de mito e razão, alienação e liberdade, regressão e progresso.

Por isso, Adorno fez um dique para proteger sua arte da fama de arcaica, teológica. No ensaio “Bach defendido dos seus devotos” (não publicado no Brasil), pôs sua música no século de Mozart e Beethoven, trouxe-a até Stockhausen e Webern —marxismo cultural é isso aí.

Mas a teoria crítica tem limites. O antídoto infalível contra a estética carolo-conservadora é escutar “A Paixão Segundo São Mateus”. Ao vivo, no calor da criação, depois de muito trabalho, no centro de uma cidade alquebrada, numa nação indigente, num continente sem superação à vista.

Que o diga Nathalie Stutzmann, que além de maestrina é contralto. Que o digam Jesus e o Evangelista: o barítono americano Steven Powell e o tenor inglês Robin Tritschler. Que o diga a trupe inteira da Sala São Paulo.

De camiseta, jeans e tênis, Stutzmann ensaiou “A Paixão Segundo São Mateus” com firmeza e alegria. Às vezes se descabelava para se fazer entender. O oratório será mostrado de novo neste sábado e na segunda-feira. Cogite ouvi-lo.

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