Mario Sergio Conti

Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".

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Pessoas de bem também lincham

Em 'Profetas da Mentira', um estudo pioneiro sobre o preconceito e seus porta-vozes

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O preconceito é um problema intratável porque todos negam ter preconceitos. Como poucos o estudam, fica difícil enfrentá-lo sem ser chamado de obtuso, politicamente correto ou —pé de pato, mangalô, três vezes— marxista cultural.

Os bem-educados apelam para chochices tipo "é preciso mais educação". Mas a educação deseduca quando o responsável pela educação se vangloria de seus preconceitos. Chamá-lo de preconceituoso dá um lustro ao que ele almeja: ser visto como vítima de preconceitos.

É imprescindível, porém, estudar o preconceito. Porque só assim se pode entendê-lo e vencê-lo. Um passo largo nesse sentido está num livro septuagenário: "Prophets of Deceit" (profetas da mentira - um estudo das técnicas do agitador americano), ainda não publicado no Brasil.

Ilustração
- Bruna Barros/Folhapress

Ele foi concebido por Leo Löwenthal, sociólogo nascido na Alemanha, em 1900, que morreu 92 anos depois nos Estados Unidos, onde se exilara durante a Segunda Guerra. (O psicólogo polonês Norbert Guterman também assina o livro, mas sua participação foi assessória.)

Löwenthal integrou a Escola de Frankfurt, o grupo de —vade retro— marxistas culturais que criticou o capitalismo sem bater palmas para o stalinismo. A história editorial de "Profetas da Mentira" explicita as ligações de Löwenthal com a confraria da teoria crítica.

O livro faz a anatomia de centenas de panfletos, discursos e programas de rádio da extrema direita americana. Ele integrou o projeto interdisciplinar "Studies in Prejudice", de cinco volumes, dedicado ao estudo do preconceito, mormente antissemita, nos anos 1940.

Com apresentação de Herbert Marcuse, "Profetas da Mentira" foi reeditado em 1970, no auge da contestação à guerra do Vietnã. Já a edição original, de 1949, teve prefácio de Max Horkheimer, que Olavo de Carvalho, com sua costumeira boçalidade, acusou de defender a pedofilia.

No mês passado, saiu na França uma tradução do livro, que a editora La Decouverte afirma ser "um manual atualíssimo de resistência intelectual e política à sedução dos discursos fascistas".

Horkheimer nota no prefácio que "o mundo pouco se lembra da perseguição mecanizada e do extermínio de milhões de seres humanos, num curto período de tempo, no país que era considerado um bastião da civilização ocidental".

Falava da Alemanha nazista —mas falava também dos Estados Unidos do pós-guerra. Ou seja, falava do macarthismo que varria o país em 1949.

A atualidade sublinhada pela edição francesa, por sua vez, refere-se aos ogros que se assenhoraram do poder nos últimos tempos: Trump nos Estados Unidos, Orbán na Hungria, Erdogan na Turquia, Duterte nas Filipinas, Bolsonaro no Brasil.

É uma questão em aberto se as bestas-feras da direita poderão impor alguma forma de fascismo. O que a análise de Lowenthal faz é demonstrar a afinidade das construções contemporâneas de propagação do fanatismo com as empregadas pelas turbas de antanho.

O meio onde eles se propagam é o mesmo: a nebulosa dos meios de comunicação. Ontem, programas de rádio, igrejas e panfletos. Hoje, programas de rádio, igrejas e redes sociais. É como dizia —tóc, tóc, tóc— o marxismo cultural: os homens são apêndices das máquinas.

O modo como falam é parecido: embaralham fato e ficção (fake news). Um vago mal-estar lhes serve de tabuleiro de xadrez. É nele que dispõem forças irreconciliáveis. De um lado, vermelhos, degenerados e libertinos. Do outro, pessoas de bem, famílias ordeiras, cristãos castos.

A gente normal é vítima de conspirações misteriosas; são perdedores radicais e ressentidos. Os anormais são um amálgama de estereótipos, cachaceiros indolentes e maliciosos. Os maus atazanam os bons mesmo quando vencidos. Não há história nem dados aferíveis, mas mitos, repetidos à náusea pelos porta-vozes do apocalipse.

Löwenthal avisa que privilegiou a psicologia, em detrimento da sociologia. "Profetas da Mentira", portanto, está isento de luta de classes, mas permite observar inúmeros exemplos de narcisismo infantil e sadismo adulto.

Não há discurso político desligado da realidade. Como reproduzem esquemas irracionalistas aplicados no passado, os arautos do fanatismo de hoje em dia sabem muito bem o que pretendem.

Quando as pessoas de bem vituperam seus adversários noite e dia, responsabilizando-os por todos os males e desumanizando-os, elas imitam os profetas antissemitas de Löwenthal: admitem a passagem das palavras aos atos e vislumbram o linchamento de inimigos por milícias.

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