Mario Sergio Conti

Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".

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Mario Sergio Conti

Questões vernáculas

Mudanças na língua à capucha, à chucha caladinha e a bandeiras despregadas

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Numa noite no inverno de 1936, um fedelho de 24 anos foi à rua Boa Vista e subiu à sala de Leo Vaz, redator-chefe d’O Estado de S. Paulo, o tremebundo matutino da oligarquia cafeeira. Napoleão Mendes de 
Almeida tivera o desplante de garatujar dois artigos e queria publicá-los ali.

Não só: o atrevido caipira de Itajaí almejava uma seção fixa no jornal. Sua murcha credencial era o diploma em filosofia e letras clássicas, cuja tinta mal secara, do Instituto dos Salesianos em Lavrinhas, um arraial para lá de onde Judas perdeu as botas.

A leitura de Vaz foi “silenciosa, ininterrupta, vagarosa, duas vezes acompanhada de um olhar desconfiado e penetrante, por cima dos óculos”. O calejado jornalista perguntou então ao neófito afoito se seria capaz de escrever um artigo do mesmo quilate todas as semanas.

“Sou sim, senhor”, respondeu o rapazola, caprichando na vírgula. Vaz deu outra tragada no cigarro e indagou: “Qual o título que vamos dar à seção?”. 

Nascia a vetusta coluna “Questões Vernáculas” e sua cria, o “Dicionário de Questões Vernáculas”, que conta essa linda história.

O onisciente tomo de Napoleão Mendes de Almeida permaneceu décadas no prelo, mas à capucha, quiçá à chucha caladinha. Não teve a fama a bandeiras despregadas de “Dreyer’s English” (Random House, 292 pág.), atual coqueluche do gênero, que vende à beça.

Ilustração
Bruna Barros/Folhapress

Para entender o parágrafo anterior há que se ir à primeira página do “Dicionário”, a encimada por uma letra A giganta. Lá se informa que “à capucha” é sinônimo de “sem alarde”; “a bandeiras despregadas”, de “em toda extensão”; e “à beça” equivale a “muito” e “à bruta”.

Já a locução “à chucha caladinha”, com sua ternura brejeira e sensual, quer dizer “dissimuladamente”. Faz sentido porque “chuchar” vem de “sugar”, e traz um quê de embuste: embora o bebê mame —sugue— o seio, ele chucha mesmo um paninho embebido em leite.

São informações bocós, flores inúteis da fascinante erudição de Mendes de Almeida. Não há sombra de encanto equiparável em “Dreyer’s English”, o primo hipster de “Questões Vernáculas” —livro de um executivo novo rico, do proverbial burguês-boêmio de sapatênis.

Aos 61 anos, o nova-iorquino Benjamin Dreyer raspa a calva, apara a barba fio a fio e posta fotos do cachorro, presumivelmente de raça rara. É vice-presidente e editor-chefe de texto da Random House, uma das maiores editoras americanas.

“Dreyer’s English” é descolado como o autor. Por isso, uma semana depois de sair, entrou na parada dos mais vendidos. O livro é um manual de grande empresa fantasiado de cartilha de autoajuda. Padroniza à beça, mas com um sorriso nos lábios. Não há uma mísera página sem gracinhas.

Dreyer quer consertar a escrita das pessoas, para que fique limpa e clara —um brinco—, mas sem perder seus traços peculiares. Ele obtura e pole a prosa alheia até brilhar. Dá para reescrever isso: Dreyer não é estilista; é dentista.

Como escrever não tem nada ver com odontologia, como palavras não são caninos ou molares e como o nobre ofício de dentista difere do de editor, “Dreyer’s English” não leva ninguém a ter uma prosa sorridente. Redigir independe de broca e motorzinho elétrico.

Além de questão vernácula, escrever é questão social —com perdão pelo clichê caquético. Quem o diz é Mendes de Almeida no “Dicionário”, no estilo potente —para usar um clichê da moda— que o distingue: “Se o estilo reflete o homem, o idioma reflete o povo”. E ponto final.

“E ponto final”: quem diz isso é Bolsonaro, num ímpeto estilístico de calar à bruta quem lhe possa objetar argumentos. Ponto final uma pinoia; o Brasil não é quartel. Duas objeções, pois, decalcadas de “Dreyer’s English”, que dizem respeito à língua escrita aqui.

Ponto e vírgula: está em extinção. Não é usado nem na sua função precípua, fazer listas: o governo é integrado por beócios; aventureiros; idiotas inúteis; tratantes; bobalhões; Sergio Moro; pintores de rodapé.
O ponto e vírgula está a meio caminho entre a vírgula e o ponto final. Expressa pausas, sopros, tateios, embaraços—talvez até um meio sorriso sedutor. Prescindir dele é proibir riscos e delícias inefáveis.
Travessões: ninguém os usa também. Nem em diálogos —as pessoas conversam menos— nem no meio da frase —dá-se preferência a parênteses— essas prisões abauladas. 

Só com travessões –Napoleão Mendes de Almeida concordaria?– é possível registrar o Brasil entrecortado –fragmentado; interrompido– dos dias que correm.

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