Mario Sergio Conti

Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".

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Descrição de chapéu

Celacanto provoca maremoto

Reinaldo Moraes amiúde tange o alaúde em Maior que o Mundo

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“De todas as várias maneiras de começar um livro usadas pelo mundo conhecido afora, acredito que a minha seja a melhor —tenho certeza que é a mais religiosa— porque começo por escrever a primeira frase, e confio no Todo-Poderoso quanto à segunda.”

A hilária frase acima é ideal também para começar uma crônica cultural. É evidente que se inicie um livro —ou coluna— pela primeira frase, mas não que ela delegue ao Todo-Poderoso a segunda, tão difícil de escrever quanto a que veio antes. Deus que se vire, ora.

A frase em questão foi posta no papel, no século 18, por um pastor anglicano de vocação mística nula, o irlandês Laurence Sterne. Inopinadamente, o vigário ímpio virou pândego escabroso.

Em outro zigue do zigue-zague do destino, o pífio pastor não foi para o trono dos candidatos a stand-up num programa de calouros —coisas que inexistiam na época. Sterne entrou no cânone literário como artista de ponta, autor do genial “A Vida e as Opiniões de Tristram Shandy, Fidalgo”.

Ilustração
Bruna Barros/Folhapress

Pois então: aquela frase lá no começo, a primeirona, fulgura em “Tristram Shandy”, livro que influenciou pesada e indelevelmente o —lá vai a hipérbole— maior romance nacional desde que o Brasil é Brasil, “Memórias Póstumas de Brás Cubas”.

Mas atenção. Como é do feitio de Sterne, que se deleita em procrastinar até produzir um efeito inesperado, a famigerada frase —“De todas as diversas maneiras de começar um livro etc.”— não é a primeira de “Tristram Shandy”. Nem a última. Figura, de esguelha, na zona do agrião.

Na edição da Wordsworth, de 450 páginas, a ora famosa frase aparece na 376. Já a serpenteante sentença que de fato inicia o romance extravasaria a coluna, de tão extensa. Ela ocupa um paragrafão atravancado, travado por travessões e travessinhos, por alçapões e alçapinhos. Por digressões.

Em suma, o que se vem fazendo aqui, e se repete agorinha mesmo, é aquilo que todo manual de redação recomenda evitar: digressões. Sobretudo digressões a propósito de assuntos nada a ver. A propósito, a tradução de “Tristram Shandy”, de José Paulo Paes, anda fora do prelo há anos.

Chega. Muita digressão enche. Mas é que a digressão é o princípio organizador —e dissolvente— de “Maior que o Mundo”, de Reinaldo Moraes (Alfaguara, 451 págs.). A verborragia divagatória é uma resposta à crise do narrador, incapaz de inventar a primeira frase de seu romance.

A frase inicial dele, dito e feito, é sofrível: “Um cara vai pela rua falando num velho gravador portátil de fita cassete”. Ela é precisa, todavia, porque Kabeto, o escritor à cata da frase fundadora da narrativa, sobe a Teodoro Sampaio enquanto narra num gravador o que “urubuserva”.

Kabeto escuta o vago marulho de um protesto na Paulista; discursa à massa troncha que puxa ferro numa academia; afunda num bar no Baixo Augusta; bebe; fuma; cheira; vê arte chocante de soslaio; volta à quitinete com uma galera; toma Viagra; vomita; capota. A suruba segue sem ele.

Embora pouco ocorra, de digressão em digressão se chega à página 338. O gravador, recurso narrativo meio médio, é abandonado sem mais. O Viagra faz efeito e Kabeto passa de impotente a priápico. Fila a boia na casa da mãe, zanza nas quebradas, acha um manuscrito cujo autor é anão.

Anão? Pois é. Melhor então não resenhar “Maior que o Mundo”. É livro pop em progresso, mera terça parte do todo. Porém, há um chato porém: ele está aquém de “Pornopopéia”, o romance anterior de Moraes, que deu um murro danado para arquitetar uma forma condizente com seu talento.

“Pornopopéia” se escorava nas “Memórias de um Sargento de Milícias” para recriar um malandro da colônia na era Lula. Com fuzuê e garra, o romance compôs uma epopeia da estúpida pauliceia —com PCC, marketing, coca, tiros, seicho-no-ie, pinga, paranoia e pousada na praia.

“Maior que o Mundo” não se apoia em picas e periga querer apenas divertir. O virtuosismo sulfúrico dá as caras, se bem que às vezes soe como paródia chocha de “Pornopopéia” ou a digressão descambe para um neonaturalismo cheio de marra: metalinguagem, meu! Exemplos abaixo.

Sabadão fedendo a vômito e fezes. Gritinho de estilhaçar vidro a prova de bala. Mó gripe. Se flagrasse a outra arriando a massa no pinico, aí era eroticídio. Entupido de estilo. Estridência de enlouquecer uma ostra. Marinando em merda e sangue. Amiúde Gertrude tangia o alaúde. Celacanto provoca maremoto. Tudibão.

Como Moraes tem pique de Sterne, tudibão e até a última frase da trilogia.

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