Mario Sergio Conti

Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".

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O sol não nasce nunca

A arte turva de El Greco e Goeldi na crítica clara de Rodrigo Naves

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Basta um olhar de soslaio para perceber que tal tela é de El Greco, o pintor que nasceu em 1541, na ilha de Creta, então possessão da República de Veneza, mudou-se para Roma e depois sentou praça em Toledo, na Espanha. Arredia, sua pintura repele as regras e rótulos dos livros didáticos.

Com suas figuras humanas distorcidas, suas amorfas massas de cor e seus fanáticos de olhos febris, a obra dele destoa da calma clássica de Leonardo e da estética do inacabado de Michelangelo. Se retém dobras abauladas do barroco, antevê o Picasso cubista. É carregada, irredutível.

Como se sabe pouco da vida do Grego, seus críticos se refugiam no genérico (a Inquisição, o maneirismo), recorrem a paráfrases de mau gosto (suas distorções são serpentes, labaredas, mandrágoras, vísceras), dão chutes pseudobiográficos (pintava assim porque ficou cego ou tantã).

Raros são os que dizem algo direto e vital, como Jonathan Brown, estudioso da pintura espanhola: “O sol não brilha nunca no mundo de El Greco”. Rodrigo Naves parte dessa afirmação para construir “Dois Artistas das Sombras” (Companhia das Letras, 208 págs.).

Ilustração
Bruna Barros

O livro é notável porque aprofunda o entendimento de um mestre da pintura que nos é distante no tempo e no espaço. O ensaio dialoga de igual para igual com o que de melhor já se disse de El Greco. 

Acompanhe-se, por exemplo, o que vem depois de dizer que na sua obra o sol não nasce: “A sombra ilumina... Tudo permanece em suspenso, paralisado pela solidez das texturas, insensível aos chamamentos de uma significação imediata. A presença tão crua dos quadros gera uma iminência de sentidos que é um momento turvo e opaco”.

Não está nada mal para um caboclo de São José dos Campos. Ainda mais porque ele não aspira ao cosmopolitismo pós-moderno. É como intelectual periférico, de pobreza franciscana, que capta outro El Greco —e enxerga o Brasil a partir das trevas que ele pintou no século 16.

O segundo dos “Dois Artistas das Sombras” é Oswaldo Goeldi, gravurista carioca criado na Suíça. O ensaio sobre El Greco saiu em 1985, na coleção Encanto Radical da finada Brasiliense. O acerca de Goeldi tem 20 anos. Estavam esgotados há décadas; seguem afiados, falam do Brasil.

Naves nota que, a par das enormes dificuldades para obter livros e se informar, os anos em que estudou El Greco —os da ditadura— foram “de convívio intenso e grandes esperanças”. Acreditava que logo viria “uma sociedade mais igualitária e justa, mais democrática e promissora”. Era um tolo?

“Não me tornei um velho cínico”, ele avisa. E então se refere aos tristes dias de hoje: “Não me lembro de ter vivido um ambiente político, social e cultural tão desanimador”. Republicou os ensaios para “acertar as contas com um jovem que não existe mais”, ele mesmo.

O que existe, o que perdura, é o “mundo instável e ameaçador” de El Greco e Goeldi. Se o primeiro acredita na redenção espiritual, mediada pelo real, o carioca “laico, mas não menos exigente, quer que uma eventual salvação seja marcada por uma experiência mais rica da existência”.

A inquietude e o deslocamento do mundo de Goeldi são, para Naves, produto do estranhamento de um estrangeiro que não foi íntimo do Brasil —o que lhe permitiu perceber a precariedade de nossa vida urbana. Nas suas cidades melancólicas, onde urubus não alçam voo, o sol também não luz.

Goeldi, diz ele, “não propõe saída para nada. Mantém tudo de fora, na exterioridade: luz, armários, lampiões, guarda-chuvas, pessoas. Nada se encontra no lugar na sua obra”. Ao artista resta “engrandecer e tornar singular o negror”. E é isso que Naves faz no livro.

A arte sombria e a crítica clara estão à altura do Brasil no qual nos foi dado viver, o do trânsito da ditadura à debacle: “Um país que, à exceção dos barões da prepotência, não conseguiu organizar uma força política e associativa que fizesse frente aos descalabros do mandonismo arrogante”.

Na última frase do prefácio a “Dois Artistas das Sombras”, Rodrigo Naves indaga: “Afinal, há salvação em algum lugar?”. A pergunta ecoa dúvidas que ele já expunha, lá se vão 45 anos, no gramado em frente à Escola de Comunicações e Artes, na Cidade Universitária.

Salvação não havia. Nem haverá O que não o impediu de procurá-la —no marxismo heterodoxo de Antonio Labriola e Georges Sorel, no ímpeto libertário do anarquismo, na filosofia de Sartre, na solidão que aspira à solidariedade no mundo sem sol de El Greco e Goeldi.

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