Mario Sergio Conti

Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Mario Sergio Conti

Diário holandês

Poucos dias e centenas de imagens de Vermeer, Escher, Rembrandt e Elsken

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Amsterdã, 27 de outubro. Com poucos dias de atraso, deu para comemorar o 350º aniversário da morte de Rembrandt no Rijksmuseum, onde está o núcleo da sua obra. De quebra, acompanhou-se ao vivo a restauração do seu quadro mais famoso, “A Ronda Noturna”, de 1642.

Ao usar computadores, estetoscópios eletrônicos, infraluz, raios laser e tudo o que há em matéria de parafernália tecnológica, além de solventes e tintas especialmente inventadas, a restauração escancara o erro risível do título da tela: essa ronda noturna ocorre de dia.

Vinda do canto superior esquerdo, a luz do sol se derrama sobre a mão estendida do chefe dos milicianos, 
projetando sua sombra na túnica do lugar-tenente da tropa. Posterior à morte de Rembrandt, o título errôneo evidencia a força do seu claro-escuro, que não tem nada de realista.

Ilustração como se fosse as páginas de um diário de viagem, com uma imagem dos girassóis, do Van Gogh, da "Moça com Brinco de Pérola", de Veermer e desenhos de um museu holandês.
Bruna Barros/Folhapress

Atenção: esses milicianos não estão numa live à la Bolsonaro, apesar de o quadro mostrar um disparo de 
arcabuz. Para construir sua imagem pública, cada um dos 18 burgueses pagou um dinheirão (100 florins) para serem pintados por Rembrandt, que lhes conferiu dignidade.

28 de outubro. Leonardo? Picasso? Esquece: o pintor mais popular do mundo é Van Gogh. Ao contrário do que ocorre com “Mona Lisa” e “Guernica”, não há um quadro que seja imediata e unanimemente associado a ele. Um dos “Girassóis”, algum “Autorretrato”?

Sua extraordinária exuberância faz com que o Museu Van Gogh seja o lugar ideal para apreciá-lo. Acompanha-se sua maturação e versatilidade; vai-se do rude “Comedores de Batata” aos requintes do impressionismo e da arte japonesa; da pobreza à solidão e à prolífica loucura final.

Além de “Campo de Trigo sob Nuvens de Tempestade”, o que mais impressiona é a carta na qual descreve “A Rua”: “A casa e seus arredores sob um sol sulfúrico e um céu de cobalto puro”. Sendo que, no quadro, o sol não pinta, é enxofre na fachada da casa com janelas esmeralda.

Roterdã, 29 de outubro. “Lust for Life”, no Nederlands Fotomuseum, expõe um panorama pulsante do fotojornalismo: imagens dos anos 1960 de Ed van der Elsken. Como nelas há nudez inocente, vapor barato, suor, protesto, estupor e alegria. “Tesão pela Vida” é o título ideal.

30 de outubro. Por ser um grande porto, Roterdã foi posta abaixo pelos bombardeios nazistas. Ou seja, para a arquitetura contemporânea, é uma cidade de tirar o fôlego. Estão ali as casas-cubo, a ponte Erasmus, o Markthal, a Estação Central e De Rotterdam, de Koolhaas.

Haia, 31 de outubro. O Museu Escher dirime eventuais preconceitos. Escher não era um ilustrador de truques ópticos. Era geômetra, pensador, matemático, artesão e inventor de mão cheia. Mas fica a dúvida: fazia arte?

Haia, 1º de novembro. Mauritshuis —Casa de Maurício— é uma mansão construída no auge do Século de Ouro holandês, o 17, pelo príncipe Maurício de Nassau-Siegen.

Como se endividou para construí-la, Maurício aceitou o convite da Companhia das Índias Ocidentais para ocupar terras no Novo Mundo e guerrear contra portugueses e espanhóis. Imagens daquela paisagem remota estão numa salinha com meia dúzia de pinturas de Eckhout e Rugendas.

Poucos a visitam e ninguém presta atenção à acanhada placa na qual, canhestramente, a Mauritshuis meio que pede desculpas pela tortura, escravidão e morte de milhares de pessoas. Mas nunca que a hipocrisia irá redimir as vítimas do capitalismo mercantil.

A Casa de Maurício abriga “Diana e suas Ninfas”, “Menina com um Brinco de Pérola” e o quadro que Proust achava “o mais bonito do mundo”, o único do qual Joyce tinha uma reprodução, “Vista de Delft”. São três das 30 telas da obra mínima e detalhista de Vermeer (que os holandeses pronunciam “vermír”).

Pintor de interiores, seus quadros tão-somente aludiam ao mundo. A luz que entra pela janela; os mapas e globos terrestres; as cartas mandadas por gente que estava longe; o chapéu de pele de castor, bicho que só existia no Novo Mundo —e portanto fora obtido em meio à empreitada colonial.

“Vista de Delft” é seu único trabalho que contempla o mundo lá fora, a cidade onde nasceu e morreu. Como mostra o relógio na torre da igreja, são 7h da manhã. Atracados na margem, barcos parecem prontos para zarpar rumo a mares longínquos. Para o Brasil inexistente?

Delft, 2 de novembro. Enterrado na Igreja Velha, Vermeer jaz sob uma placa de mármore pregada no chão. Ao sair, no poente, uma impressão de paz paira no ar. O indivíduo se amolda ao mundo. Viver é bom.

LINK PRESENTE: Gostou desta coluna? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.