Mario Sergio Conti

Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".

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Soube que você pinta casas

Filme de velhos e para velhos, 'O Irlandês' fala do tempo irredimível e sem sentido

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“O Irlandês” está tão saturado de sentidos, e foi precedido por elogios tão compactos, que adquiriu uma sacralidade extemporânea. No Belas Artes —que cometeu a insensatez de exibi-lo numa tela pequetitinha— houve até palmas no final. Aplaudia-se o quê, precisamente?

Como o filme é denso, não denuncia males nem celebra heróis, a plateia talvez ovacionasse a si mesma. Por acompanhá-lo por três horas e meia; por vê-lo no cinema e não, como os vulgares, na TV; por ter testemunhado o fim de uma era, um espetáculo que já não se produz mais.

Diversão industrial barata, o cinema adquire em “O Irlandês” a aura de experiência única, acessível apenas aos iniciados nos mistérios da arte pela arte. Daí sua sacralidade, e tudo que vem junto com ela: o lusco-fusco à Rembrandt, o ar abafado, a repulsa ao presente, a perplexidade.

Ilustração de três homens batendo palmas. As mãos estão representadas bem maiores do que o tamanho comum das mãos. O fundo é preto e há três refletores
Bruna Barros/Folhapress

É um filme de velhos. Scorsese tem 77 anos; De Niro e Pesci, 76; Pacino, 79. São os quatro ases de um gênero tão americano quanto o Colt 45, os filmes de gângster. Eles brilharam nos seus grandes momentos, nos três “O Poderoso Chefão”,  “Scarface”,  “Os Bons Companheiros” e “Cassino”.

Sem ter assistido a esses quatro filmes, “O Irlandês” fica anacrônico como um faroeste —outro filão da cinematografia americana que caducou. Tanto um gênero quanto o outro expressaram o avanço da lei e da ordem nos Estados Unidos. Formaram a épica da expansão do capital.

Assim como os bangues-bangues enalteceram as armas de fogo que dizimaram os índios, para se apropriar de suas terras, os embates entre mafiosos e policiais durante a Lei Seca teatralizaram o triunfo da ordem puritana.

Com o Velho Oeste conquistado, e com o submundo de Chicago sob controle, o cinema americano passou a submeter, simbolicamente, outros países. Vieram então os filmes de guerra, a propaganda imperial. Depois, avançou-se pelas galáxias: a ficção científica das guerras nas estrelas.

Sem ter aonde ir, Hollywood agora afunda no apocalipse e nos delírios fascistas. “O Irlandês” está na contracorrente: contempla o passado, é súmula e elegia da mitologia da Máfia, constata que o tempo não tem sentido e é irredimível. É um filme para velhos.

Dois tempos se entrelaçam no filme de Scorsese. Um é o tempo histórico, no qual vive a figura real de Jimmy Hoffa (Al Pacino), que nos anos 1960 e 1970 era mais famoso que Elvis Presley e os Beatles.

Abre-alas do crime organizado e líder do maior sindicato dos Estados Unidos, o dos caminhoneiros, Hoffa esteve no coração da política americana de Kennedy a Nixon, da Baía dos Porcos a Watergate. Em 1975, desapareceu sem deixar traço; teria sido morto pela máfia.

O outro tempo é o individual, o de Frank Sheeran, o irlandês que dá título ao filme (De Niro). Logo na primeira conversa, Hoffa demonstra saber o que Sheeran, um caminhoneiro, faz de verdade: “Soube que você pinta casas”, diz-lhe, e o contrata como guarda-costas.

A expressão se refere ao sangue que se espalha pelas paredes quando um assassino atira na sua vítima.

Como o espectador, Sheeran não é informado do significado da frase, o filme alude a ela visualmente. O protagonista é objeto e não sujeito da ação. Está perdido no tempo.

Perdida também está a câmera de Scorsese. Na primeira cena, ela tateia longa e lentamente os corredores de um asilo até encontrar Sheeran, que, decrépito, conta ao espectador o que lhe sucedeu na vida. Não é um narrador confiável porque ele próprio está espalhado pelo tempo.

Quer dizer: quando jovem, sua juventude aparece; maduro, mostra-se o que fazia; na velhice, encomenda seu caixão e aguarda a morte. Sheeran é feito de respingos de sangue espalhados pelas paredes de uma casa vazia.

O narrador que se desconhece e, descentrado, se desdobra em egos infinitos, é recurso modernista. Ele dá o tom, por exemplo, a “Cidadão Kane”. Em “O Irlandês”, o narrador múltiplo adquire uma incômoda concretude. Até fisicamente, De Niro nunca é o mesmo.

Ele foi submetido —como Pesci e Pacino— ao “desenvelhecimento”, efeito especial que altera a fisionomia dos atores. É paradoxal: a humanização dos personagens provém da sua desumanização tecnológica, que reduz o espaço à imaginação do espectador.

“O Irlandês” escapa ao incômodo paradoxo porque Scorsese e De Niro são artistas. E sendo assim, o filme revela a nudez que Drummond, noutro contexto, chamou de “essa perfeita anulação do tempo em tempos vários, a modelar campinas no vazio da alma, que é apenas alma, e se dissolve”.

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