Mario Sergio Conti

Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".

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Liquidação literária

O mercadão proustiano oferece rabiscos pífios e fofocas acerca de um prêmio bobo

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Na próxima terça-feira (10) comemora-se o centenário do majestoso dia no qual Marcel Proust foi tirado da cama por Céleste Albaret, sua empregada. Era meio-dia e, como de hábito, ele estava nos braços de Morfeu.

Passara a madrugada escrevendo e não queria ser perturbado. Céleste decidiu despertá-lo porque Gaston Gallimard, o editor do patrão, estava tão afogueado que ameaçava lhe dar de viva voz a boa nova, recém-recebida. 

A própria moça levou então a momentosa notícia a Proust: ele acabara de ganhar o Prêmio Goncourt de 1919, pela publicação de “À Sombra das Meninas em Flor”, o segundo dos sete tomos de “À Procura do Tempo Perdido”.

Ilustração com o rosto do Eça de Queiroz com um fundo de céu com nuvens.
Bruna Barros/Folhapress

Pela primeira, e única, vez na vida, Proust reagiu com uma frase curta: “Ah?”. Em seguida, advertiu Céleste: “Não quero receber ninguém. Sobretudo jornalistas e fotógrafos”. Fim da anedota.

Ainda assim, a láurea centenária rendeu a Thierry Laget as 262 páginas de “Proust, Prêmio Goncourt – Um Motim Literário”, publicado na França pela venerável editora Gallimard. Qual é a importância da efeméride, desse copioso “motim”, para a cultura francesa? Nenhuma, zero.

Em compensação, foi também lançado há pouco, em Paris, um livro da pena do próprio Proust, “O Misterioso Correspondente e Outros Contos Inéditos” (Fallois, 174 págs.). Cabe repetir a pergunta, agora com maior cabimento. Qual o valor desses relatos inéditos?

Mas a penosa resposta será igual: sua importância literária, biográfica e histórica é nula. Nula, não: nociva. Rabiscados por um bigodudinho de 20 anos, um inseguro e afetado Marcel, os rascunhos revelados por “O Misterioso Correspondente” são um desserviço à sua arte.

Nos muitos meses de marketing do livro, propagandeou-se que, pela primeira vez, Proust tratava abertamente da homossexualidade. Não teria publicado os contos porque as manifestações gays eram abafadas e silenciadas no fim do século 19, e não ostentadas com galhardia.

Não era bem assim. As abordagens literárias da homossexualidade variavam. Contemporâneo de Proust, André Gide a propagandeou com orgulho. Oscar Wilde, também ele hedonista, mas vítima do moralismo judicializado, tratou sua preferência sexual com pungência, se bem que genérica.

A tese também não se sustenta porque Proust publicou na mesma época, em “Os Prazeres e os Dias”, contos incisivos de temática homossexual. Já o que sobressai em “O Misterioso” é a confusa solidão de um adolescente, e não a sua sexualidade. 

Que a infelicidade juvenil tenha sido causada pela condição de gay é uma interpretação, não uma evidência. No conto “Lembrança de um Capitão”, por exemplo, Luc Fraisse, o erudito prefaciador do livro, apresenta o protagonista como homossexual. 

Mas o relato, vago e incompleto, quando muito sugere que o capitão olhou com interesse para um subalterno. Que ele seja gay é uma suposição que emerge da análise literária do prefaciador. Não é uma afirmação aferível no texto de Proust.

A comparação com outro capitão pode ser útil: gestos simulando arminhas fálicas; afirmar que só mulheres bonitas merecem o estupro; preferir um filho morto em vez de gay —tudo isso configura homossexualidade latente. 

Mas daí a dizer que o capitão seja de fato gay vai uma distância: é uma ilação, talvez temerária.

O que se tenta, no final das contas, é enxergar nos garranchos de “O Misterioso” a caligrafia escorreita de “À Procura do Tempo Perdido”. É buscar continuidades no descontínuo: foi só 20 anos depois, já quarentão, que Proust descobriu a forma de sua obra-prima.

Como o que ele garatujou antes foram tentativas mal sucedidas, “O Misterioso” tem caráter comercial. Isso por que tudo aquilo que ele pôs no papel, de bilhetes a continhos mal ajambrados, é agora passível de comercialização. 

Pelo excelente motivo de Proust ser hoje o escritor francês mais estudado no mundo. E é mais fácil folhear um livrinho de “inéditos”, mesmo que pífios, a mergulhar em “À Procura do Tempo Perdido”. 

A existência do mercado proustiano também explica “Proust, Prêmio Goncourt”. Aqui, a mercantilização é escancarada: importa mais o prêmio do que as meninas em flor; a láurea cala a obra.

A inversão é total porque o Goncourt só existe porque um dia foi dado a Proust —e não o contrário. Com o passar das décadas, ele virou material de propaganda. Ganhá-lo significa vender milhares de exemplares a mais. 

Porém, para além do mercado, para além das modas e da propaganda, há arte. Há “À Procura do Tempo Perdido”.

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