Mario Sergio Conti

Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".

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'A Vida Oculta' discute o sentido dos pequenos atos dentro e fora da história

Protagonista do filme é um homem incomum: tem crenças e nelas persevera

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“Middlemarch”, o romance que George Eliot publicou em 1872, relata incontáveis casos da vida inglesa na província. No desenlace do livro, ela resume o destino de um punhado de seus personagens. Contrapõe a vida sonhada à que de fato ocorreu.

A última pessoa de quem a grande escritora vitoriana fala é Dorothea. Audaz, arguta, criativa, ela parecia talhada para grandes feitos, para o heroísmo. Dois casamentos medíocres, e outras duras desilusões, fazem com que sua vontade de melhorar o mundo se frustre.

Ilustração de paisagem de montanhas cobertas por vegetação e uma porta no meio de uma delas.
Bruna Barros/Folhapress

Mas George Eliot observa que, se Dorothea não teve impacto sobre a ordem geral da vida, o efeito de seus atos sobre as pessoas a seu redor “foi incalculavelmente difusivo”. E então fecha “Middlemarch” com uma bem lustrada chave de ouro: “O bem crescente do mundo depende parcialmente de atos a-históricos; e se as coisas não vão tão mal para você e para mim como poderiam, isso se deve em parte ao número dos que viveram fielmente uma vida oculta, e jazem em túmulos não visitados”.

A mesma frase aparece ao final das três horas de “Uma Vida Oculta”, de Terrence Malick. Ela não explica apenas de onde foi tirado o título do filme. Também o tema das duas obras é o mesmo: o sentido dos atos de gente anônima —estejam dentro ou fora da história.

São ações corriqueiras de mulheres e homens banais. 

Lavram a terra, amam, cuidam dos filhos, conversam com vizinhos, festejam, rezam. Ao contrário de Dorothea, o protagonista do filme, Franz Jägerstätter, não tem maiores ambições, sente-se bem dentro de suas botas.

Temente a Deus, vive para a mulher, as três filhas e a mãe num vilarejo da província austríaca de Radegund. Mas eis que os nazistas invadem e anexam o país, sendo aplaudidos pelo povo. A expansão fascista se acelera. Escuta-se ao longe o ronco de aviões militares. 

A guerra começa.

Todo austríaco que for convocado para a luta tem que jurar fidelidade ao Führer. De bicicleta, o carteiro passa uma, duas, três vezes pela fazendinha de Franz. Ele olha apreensivo para a mulher, Franziska: é contra a guerra, nunca que jurará lealdade a Hitler.

“Uma Vida Oculta” é uma longa ruminação acerca dos dilemas de Franz. Fazer o que acredita ou proteger os que ama? Ceder e seguir em frente, ou fazer um sacrifício inócuo? Jurar em falso ou afirmar a verdade? Resistir ao mal é fortaleza ou vaidade? O mal está dentro ou fora de nós?

O filme é feito de indagações, música e imagens grandiosas. Há poucos diálogos, muitos sem legenda ou mesmo som. A angústia é mostrada por meio das cartas de Franz e Franziska. De paisagens intoleravelmente lindas. Dos rostos coléricos que agridem o casal.

Radegund inteira desconfia deles. Os que querem ajudá-los, os espectadores, todos desconfiam. Por que não se conformam? Por que querem ser diferentes? Acham-se superiores? Ecoa no filme a pergunta de “Middlemarch”: “Qual solidão é mais solitária que a desconfiança?”.

As pessoas sensatas —autoridades eclesiásticas, jurídicas e militares— dizem a Franz que, como ninguém verá a sua negativa, ela é absurda. Mas aquele homem comum é incomum: tem crenças e nelas persevera.

Como Franz é um católico fervoroso, que procura até um bispo em busca de orientação, a sua resistência ao nazismo é bem mais moral que política. Sua teimosia tem um quê de fanatismo. Está fora da história porque diz respeito a algo maior, inefável —irreal.

Malick e George Eliot fazem com que Franz e Dorothea cheguem por caminhos opostos ao sacrifício. A inglesa renuncia a seu destino heroico para fazer o bem a poucos. O austríaco desiste da comunhão entre os homens para afirmar sua fé.

A romancista acredita na santidade. No início de “Middlemarch”, ela aproxima Dorothea de Santa Teresa d’Ávila, a mística espanhola do século 16 que se sacrificou pelas pessoas pobres e próximas.

No fim do romance, ela escreve que, como situações históricas são irreproduzíveis, as novas Teresas —assim como as novas Antígonas— terão de buscar outras saídas. Caso de Dorothea, cuja humilde santidade é renunciar à glória da santidade triunfante.

É um destino oposto ao de Franz Jägerstätter, que vai da humildade à glória. Na vida real, ele foi desencorajado e até hostilizado pela hierarquia católica, que se compôs com o nazismo.

Em 2007, porém, sua vida oculta tornou-se história. Foi declarado mártir e beatificado pelo papa Bento 16 —talvez não por acaso um adolescente alemão que foi obrigado a se alistar na Juventude Hitlerista.

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