Mario Sergio Conti

Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".

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Descrição de chapéu Coronavírus

Bolsonaro disputa com Donald Trump a vanguarda macabra

Na peste e na poesia, mesmo o mais horroroso martírio deve seguir seu curso

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Vivemos dias extraordinários. Jamais foi tão forte a percepção de que a humanidade é uma espécie.

Em poucas semanas, 7 bilhões de pessoas, em duas centenas de países, reagiram em massa por um mesmo motivo. O medo de morrer fez com que se afastassem umas das outras.

Ilustração onde homem usando roupas antigas ara terra com um cavalo. Ele diz "E daí?". Ao seu lado, homem pastoreia animais. Ele está apoiado em um cajado e pensa: "E daí". Ao fundo, uma pessoa se afoga. As águas são a única parte do desenhos com cor.
Bruna Barros/Folhapress

Isso nunca aconteceu antes. O extermínio dos povos autóctones do Novo Mundo, por exemplo, se estendeu por quatro séculos. A ligação entre mundialização e mortandade se adensou com a gripe espanhola: em 1918, um quarto da humanidade ficou doente e 20 milhões de pessoas sucumbiram.

A Segunda Guerra Mundial abriu uma nova era. Cerca de 3% da espécie foi assassinada em seis anos: 80 milhões de pessoas de 30 países, a maioria delas civis. Houve genocídios industriais, fome e epidemias administradas com fins bélicos, desastres ambientais, explosões nucleares.

Com 5 milhões de contaminados, e menos de 350 mil mortos, a peste atual não está sendo destrutiva como a última grande guerra. O coronavírus não é um inimigo com o qual se disputa poder e territórios. Mas, igualmente, ele não é um dado puro e simples da natureza.

Ele é produto da globalização. Não teria se espraiado com rapidez supersônica sem cadeias planetárias de produção e consumo. Em um mês, saiu de mercados na China, foi a estações de esqui na Suíça, passou por igrejas na França e mesquitas na Índia, matou em Manaus e em Manhattan.

A mercantilização do mundo facilitou a carnificina. O trabalhador de hoje não é o escravo de ontem —uma propriedade a ser preservada para trabalhar e criar valor. Não precisa ter saúde de aço porque pode ser substituído por outro fornecedor de mão de obra, outro prestador de serviços, outro produtor de mercadorias.

Cada trabalhador que cuide de sua saúde. Há empresas que vendem o serviço. Chamam-se hospitais.

Como aviões e hotéis, eles precisam estar cheios para serem rentáveis. Sobretudo as UTIs: como requerem investimento pesado, têm de ser ocupadas dia e noite, o tempo todo.

Com o incremento tecnológico, há hoje trabalhadores demais e empregos de menos. O trabalhador perde valor; é demitido; terceirizado; desregulamentado; precarizado. O empresariado não quer muita gente assalariada. Quer uma sociedade de manobristas e entregadores de pizza.

Na pandemia, os políticos que representam esses valores são os de crueldade gélida e abúlica.

Bolsonaro disputa com Trump a vanguarda macabra. Ele é sincero quando desconsidera a morte de milhares e pergunta: e daí? Desde que o corona não pegue a prole miliciana, tudo bem.

Para ele, quem morre na peste são trastes que abrirão vagas. Por isso é aplaudido por Abílio Diniz e Joseph Safra, pelos bancos e pela Bolsa, por Edir Macedo e Silvio Santos.

O Ogro conta também com o apoio de cerca de 20% dos brasileiros —é o que dizem sondagens de opinião pública. Por quê? As respostas são imprecisas porque se referem a um tempo volátil, no qual a inércia convive com o inusitado.

N’“A Queda de Ícaro”, de Bruegel, por exemplo, ninguém percebe o desastre. Ícaro voava pelo céu mediterrâneo até o sol derreter a cera que colava suas asas. A tela mostra o espantoso instante em que o rapaz cai do céu, se estatela no mar, espalha água, deve até ter gritado. E ninguém o vê.

O quadro foi pintado em meados do século 16, na sangrenta época das guerras de religião, do fanatismo da reforma e da contrarreforma. Com humor e absurdo, a tela registra a solidão suicida de Ícaro —mas sem os contornos dramáticos empregados por Ovídio nas “Metamorfoses”.

W. H. Auden viu “A Queda de Ícaro” em 1938, em Bruxelas (onde se encontra até hoje). A Europa estava à beira do abismo da Segunda Guerra, que o poeta pressentia e sofria por antecipação. A queda no inferno viria poucos meses depois; e ele a associa à queda de Ícaro no mar.

Foi sob o impacto de Bruegel que Auden escreveu “Musée des Beaux Arts”, cujo título em francês busca redimir a arte antiga, salvá-la da naftalina museológica para captar a vivacidade do presente. O presente, porém, é de placidez —ainda que nele transcorra uma catástrofe.

O poema afirma “que mesmo o horroroso martírio deve seguir seu curso”. Auden atribui a sabedoria do verso aos mestres da pintura, que mostrariam como a vida prossegue, a despeito de tragédias individuais.

Como aceita o inexorável, “Musée des Beaux Arts” tem um ar resignado. A estranha calmaria desses dias de peste, também. Mas essas milhares de mortes mostram que a violência já está entre nós.

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