A tarde de verão morria devagar sobre o Peloponeso. De máscara, as pessoas ficaram distantes umas das outras nas arquibancadas do teatro de Epidauro, o mais antigo da Grécia. A sua arena era uma cauda de pavão que se abria para as colinas ao fundo —para a história.
Foi no sábado passado, dia 25. A noite desceu, a Lua luziu e começou a primeira das 33 tragédias gregas preservadas na íntegra, “Os Persas”, de Ésquilo. A estreia da nova montagem do Teatro Nacional da Grécia foi transmitida ao vivo para todo o mundo pela internet. Como ocorre com o teatro, quem viu viu; quem não, bau-bau. Não haverá outra transmissão.
O tema da peça é a vitória dos gregos sobre os persas na batalha naval de Salamina, em setembro de 480 a.C. Oito anos depois, Ésquilo ganhou com “Os Persas” o primeiro prêmio no festival de teatro de Atenas.
Embora fale do triunfo da sua gente, o autor grego situa a ação na Pérsia e só põe os vencidos em cena. Tem compaixão, aprende com a dor dos derrotados.
Não é trivial assumir o ponto de vista do inimigo. Toda analogia histórica é forçada e, no mais das vezes, falsa. Mas seria como se, oito anos depois do Exército Vermelho tomar Berlim, um grande escritor soviético escrevesse “Os Alemães”, se apiedasse dos nazistas e fosse premiado.
A encenação seguiu à risca os versos de Ésquilo, vertidos para o grego de hoje porque o antigo é de difícil compreensão para os nativos.
Graças ao bom Zeus, os bárbaros, aqueles que não conhecem o idioma grego, contaram com legendas em inglês.
Os persas foram à guerra sob o comando de Xerxes, o imperador. Ficaram em casa o coro de anciãos e a rainha Atossa, viúva do imperador Dario, pai de Xerxes, que expandiu as terras persas.
Atossa conta ao coro o sonho que teve naquela noite. Nele, duas irmãs belíssimas, uma grega e a outra persa, se disputavam. Xerxes as domina e atrela à sua carruagem. Elas continuam a brigar, o imperador cai da carruagem e se machuca.
É um mau presságio: a tentativa de unir Pérsia e Grécia, e mandar nos dois reinos, vitima Xerxes. A intenção de juntar e jugular ressurge com a notícia que Xerxes construiu uma ponte sobre o estreito entre o mar Negro e o Mediterrâneo, o Helesponto, que separa a Ásia da Europa.
Se “Os Persas” em Epidauro preservou o texto original, a música, os figurinos e o gestual foram do teatro criativo contemporâneo. O clássico sopro épico se combinou com a lírica da derrota, sempre presente.
Chega o mensageiro e conta que a frota persa foi destroçada. Atossa desaba em lamúrias e indagações. Grita: “Ai! Ai! Ai!”. A rainha pergunta quem eram os soldados inimigos. Seriam escravos?
O mensageiro responde que os adversários eram homens livres. A plateia explodiu em aplausos. Como o turismo europeu está em banho-maria devido à peste, o público era grego. As palmas vinham de um povo independente, cioso e orgulhoso de sua liberdade.
Atossa e o coro se entregam a libações e invocam Dario. Querem que o imperador saia do reino subterrâneo dos mortos, explique como foi possível que a frota persa, de 1.200 navios, fosse aniquilada por 310 naus gregas. Ele entra em cena com um esqueleto pintado sobre a túnica.
Faz uma pergunta que fere fundo os eventuais espectadores brasileiros: a desgraça foi provocada por uma peste ou pela polarização persa? Ao tomar ciência dos fatos, Dario conclui que quem causou o infortúnio foi seu próprio filho, Xerxes. Ai! Ai! Ai!
O imperador morto diz que seu sucessor foi arrogante e teve ambição desmedida: queimou 810 templos gregos, fez uma ponte sobre o Helesponto, ameaçou matar almirantes persas que tiveram medo, quis amalgamar e dominar Oriente e Ocidente.
Xerxes teve húbris, a palavra grega que designa a vertigem provocada pelo excesso. Seu filho se deixou levar pela insensata audácia dos vaidosos, quis superar o pai. Não obstante, Dario recomenda a Atossa que o acolha e proteja da elite persa – cúmplice na húbris do filho.
Ao retornar ao reino subterrâneo com passos pesados de dor, Dario diz uma derradeira frase, uma verdade tantas vezes esquecida: a riqueza não adianta nada aos mortos.
Chega Xerxes. Está prostrado e não diz coisa com coisa. Lembra Dilma Rousseff hoje. Repita-se: toda analogia histórica é temerária.
Mas uma vez Franklin Martins, secretário de Comunicação no reino petista, disse que Dilma tinha para com Lula a atitude de uma filha.
Terá querido superar o pai imaginário? Foi vítima da húbris e pôs tudo a perder? Ai! Ai! Ai!
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