Mario Sergio Conti

Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".

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Para Lévi-Strauss, contato de índios com brancos era sentença de morte

Mortandade aumentou a ponto de, com a peste, uso da palavra genocídio ter deixado de ser uma discussão linguística e jurídica

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Os dois fugitivos embarcaram em Marselha, em março de 1941, no Capitaine Paul Lemerle. Victor Serge escreveu que o navio era “uma espécie de campo de concentração flutuante”. Disse também que era “meia-noite no século”, um tempo de trevas e derrota.

Filho de pais russos que fugiam do czarismo, Victor Serge nasceu na Bélgica. Morou na Espanha, foi preso em Paris por ser anarquista e depois se mudou para Moscou, onde militou na Internacional Comunista. Lá, aderiu à oposição trotskista e foi jogado na cadeia por três anos.

Ilustração de uma blusa de manga longa e um pano brancos pendurados em um varal, cada peça tem uma mancha vermelha. Há folhagens em volta na cena
Bruna Barros/Folhapress

Uma campanha internacional o libertou —Romain Roland telefonou ao próprio Stálin e pediu a sua soltura—, e ele retornou à França. Em Paris, foi caçado pelos nazistas e pegou o último o navio de refugiados a deixar Marselha. Escapou outra vez da morte por um triz. Tinha 50 anos.

O outro exilado, Claude Lévi-Strauss, também nascera na Bélgica. Mudou-se para Paris e aderiu à seção francesa da Internacional Operária, que daria origem ao Partido Socialista. Professor de liceu, ele veio a São Paulo na fundação da USP para estudar os índios brasileiros. Foi a Mato Grosso, voltou a Paris e, judeu, agora fugia do nazismo. Tinha 32 anos.

Ele ainda não era o que só se tornaria décadas depois: um intelectual totêmico do século 20. Já Victor Serge tinha nos meios da esquerda a aura de figura mítica. O que não impediu que, em “Tristes Trópicos”, o etnólogo pintasse o retrato do companheiro de viagem com as tintas da galhofa.

Escreveu: “Seu passado de companheiro de Lênin me intimidava, ao mesmo tempo em que sentia a maior dificuldade em integrá-lo a seu personagem, que lembrava mais uma solteirona cheia de princípios”; era um “monge budista” sem “o temperamento másculo e a superabundância vital que a tradição francesa associa às atividades ditas subversivas”.

Fazer o quê? Victor Serge era de fato um subversivo especial. Prova disso são os seus “Cadernos 1936-47”. Publicados na íntegra nos Estados Unidos e na França, suas 800 páginas evidenciam uma rebeldia viva, com muito a dizer à meia-noite tempestuosa de agora.

Victor Serge, por sua vez, tratou o desconhecido Lévi-Strauss —“um etnólogo do Museu do Homem”— com respeito e curiosidade, transcrevendo escrupulosamente seus argumentos e elogios aos índios brasileiros, que considerou “inteligentes, crentes, dedicados e honestos”.

Lévi-Strauss lhe falou dos “crimes dos brancos”, que penduravam roupas de mortos por doenças contagiosas em árvores perto de aldeias, de maneira a exterminar os índios. Em menos de 40 anos, disse, cerca de 40 mil índios foram exterminados apenas em São Paulo.

O etnógrafo avisou então que faria algumas “hipóteses de ensaísta” acerca do destino dos indígenas da América. Victor Serge as resumiu assim: o Novo Mundo era incompatível com as “formas superiores de vida” —as dos europeus.

O revolucionário registrou nos “Cadernos” sua resposta ao raciocínio: “Discordo que as civilizações indígenas tenham talvez morrido devido à sua organização bárbara, nem acho que se possam abandonar as causas sociais em favor de hipóteses geográficas”.

Deu como exemplo os nahuas do México e os incas do Peru: “Eles foram pura e simplesmente assassinados, como as pessoas são mortas hoje na Polônia”. Lévi-Strauss disse que Serge era “um marxista incorrigível”. Era verdade; assim como era verdade que os fascistas matavam em massa na Polônia.

Defensor dos índios desde sempre, Lévi-Strauss elaborou um pensamento que —influenciado inclusive por Marx— extrapola o papo dos dois exilados. Mas até morrer teve uma visão trágica do destino dos índios: o seu contato com os brancos era uma sentença de morte.

Quase 80 anos depois, a questão vem se tornando cada vez mais aguda. A mortandade dos povos autóctones aumentou a ponto de, com a peste, o uso da palavra genocídio ter deixado de ser uma discussão linguística e jurídica. Ela designa o estado corrente de uma guerra de extinção.

Quem o disse foi o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, logo que o governo Bolsonaro iniciou sua obra aniquiladora: “Estamos assistindo a uma ofensiva final contra os povos indígenas”. E lembrou que o extermínio deles era sinônimo da destruição do meio ambiente e, em consequência, também da sociedade que os mata —um suicídio.

Victor Serge, à meia-noite do século passado, não era pessimista. Achava que nossa morte poderia ser adiada. Desde que mudássemos a política e a economia, a nossa maneira de viver em sociedade.

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