Mario Sergio Conti

Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".

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Com piruetas digressivas, 'Viagem ao Redor do Meu Quarto' deleita e diverte

No confinamento, que em teoria não termina e na prática derreteu, obra é republicada e traduzida por Veresa Moraes

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Xavier de Maistre, conde de uma família ilustre da Saboia, fez uma viagem memorável em 1784. Entrou no cesto de um balão, escondeu-se no fundo porque seu pai era contra a aventura, que se encheu de ar quente (o balão, não o pai; este soltava fogo pelas ventas) e subiu aos céus.

A peripécia não lhe granjeou glória. Tombou na obscuridade com a velocidade de um balão que, pfff, se esvazia. Mas seguiu no ramo dos voos arriscados e idiossincráticos, quando não idiotas.

Foi general do Exército russo, à frente do qual combateu tropas napoleônicas, pintor de paisagens, cientista amador, escritor diletante, pioneiro da fotografia e subcelebridade. Aí expirou, em São Petersburgo, depois de lhe morrerem a mulher e, ainda na infância, os quatro filhos.

A condição subcélebre decorria de ser irmão de Joseph de Maistre, o papa-hóstias papista ao qual Isaiah Berlin, num momento de azedume, que lhe eram frequentes mas não obnubilavam o tirocínio, chamou de precursor do fascismo. É dele esse primor do determinismo: “Toda nação tem o governo que merece”.

Ilustração com vários elementos e uma linha pontilhada passando perto de todos. Há uma porta feita de grade com batente de pedra, um homem negro segurando uma bandeja com uma garrafa e um copo, um caderno aberto com coisas escrita e uma pena do lado, uma cama de solteiro, uma mesa com uma vela e um papel e um tapete
Bruna Barros/Folhapress

A viagem imorredoura de Xavier de Maistre ocorreu em 1790. Um entrevero pré-carnavalesco, acerca de um rabo de saia, acabou num duelo com outro oficial. Sobreviveu sem traumas, mas, como punição pela indisciplina, foi preso.

Nada que tirasse pedaço. Foram 42 dias de cana num quarto de quartel com direito a livros, papel, pena e até a um criado. O castigo ameno lhe rendeu os 42 capítulos curtos de “Viagem ao Redor do Meu Quarto”, um brinco da literatura sardônica e contracanônica.

Com o confinamento, que em teoria não termina e na prática derreteu, a editora 34 teve a boa ideia de republicá-lo, agora com a escorreita tradução de Veresa Moraes. Com uma prosa cheia de piruetas digressivas, o livro deleita e diverte molemente. Duro é defini-lo.

Porque nele não acontece nada. O narrador percorre seu aposento “de 36 passos de perímetro”, azucrina o serviçal, devaneia numa cama cor-de-rosa e branca, brinca com sua cadelinha, comenta Molière e Empédocles, recorda, fantasia.

Às vezes, “Viagem ao Redor do Meu Quarto” parece uma elaboradíssima sátira da prepotência do Iluminismo, que na sua época corria solto.

Noutras ocasiões, por meio de alusões sutis e fugidias, queima incenso no altar de Onã, cantando as delícias furtivas do autorregozijo. Faz isso com mão leve, entremeando o vai e vem da prosa com discretas picardias.

A partir do título, o relato é um passeio ao acaso que não chega a lugar nenhum. Desemboca no seu início, o vazio do narrador, que se enxerga com complacência e bonomia. Tem uma consciência brincalhona, está acima da mixórdia, se basta no onanismo estilístico.

Sua gigantesca presunção é atenuada pelo apelo ao senso de humor do leitor e pelas piscadelas sedutoras à leitora. Para tanto, não tira a linguagem do primeiro plano. Há um capítulo, o 12, que é feito só de pontos finais, no meio dos quais põe a palavra “colina”.

Assim, faz com que se preste atenção aos capítulos de antes e depois, forçando a busca de sentido. O narrador-aranha cria assim uma armadilha, em que enreda os que o seguem. Como faz isso com maestria, tornou-se o xodó de escritores, de Nietzsche a Susan Sontag.

Esta última diz que “Viagem ao Redor do Meu Quarto” foi mais lido na América Latina do que na Europa. De Maistre, de fato, dá o ar da graça em duas obras primas do continente: o conto “O Aleph”, de Jorge Luis Borges, e o romance “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, de Machado de Assis.

O Aleph é o ponto do espaço que contém todos os outros pontos, uma esfera com todos os lugares do planeta, vistos de todos os ângulos: o mar populoso, a alvorada e a tarde, as multidões da América, cavalos de crina redemoinhada numa praia do mar Cáspio —“o inconcebível universo”.

O Aleph, porém, fica no porão de uma casa qualquer de Buenos Aires. Foi descoberto pelo beletrista Carlos Argentino Daneri, que tenta escrever um poema que também contenha o universo.

Numa estrofe, ele rima “hambre” (fome) com “Voyage Autour de Ma Chambre”, o título original do livro de Xavier de Maistre. Para os néscios, o universo cabe num poema, num porão, num confinamento.

Nas “Memórias Póstumas”, o narrador diz que adotou a fórmula livre de Maistre, na qual injetou “rabugens de pessimismo”. Mas Machado fez mais. Usou a forma da “Viagem” para percorrer a
pequenez de um narrador volúvel e cruel, numa sociedade confinada na sua miséria.

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