Mario Sergio Conti

Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".

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Mario Sergio Conti

Meu pai era paulista, meu avô italiano: sou um jornalista brasileiro

Os Conti viviam da pesca, até que um maremoto destruiu seus barcos e eles se mudaram para o Brasil

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Este “ato de nascita” atesta que Marino Conti veio ao mundo às 4 da manhã de 6 de agosto de 1879. Nasceu em San Lucido, no litoral da Calábria. Era o meu avô.

Esta certidão reza que, em julho de 1903, Marino se casou com Rosinna Gamaro, também calabresa, no distrito da Consolação. Um sapateiro e um barbeiro foram testemunhas. Tinha 23 anos; ela, 15.

Este passaporte italiano informa que seu prenome refletia sua profissão: “marinaro”, marinheiro, homem do mar. Este atestado de óbito afirma que se foi em julho de 1961, de infarto, hipertensão e câncer no pulmão. “Não deixa bens”, diz o documento. Tinha 81 anos.

Quatro mil almas moravam em San Lucido quando Marino nasceu. Uma vez fui lá, em busca de não sei o quê: continua igual. A cidadezinha melhor, Paola, fica ao lado. São dali o falecido Ítalo Zappa, nosso primeiro embaixador em Pequim e Havana, e o restaurateur Massimo Ferrari, o piemontês mais simpático do Brasil.

Os Conti viviam da pesca. Até que um maremoto destruiu seus barcos. Luigi, o primogênito aventureiro, decidiu fazer a América. Marino, seu irmão menor, veio junto.

Ilustração de três pessoas usando máscaras e andando em um local alagado. Um homem carrega uma caixa de papelão cheia de coisas, uma mulher um gato e uma mala pequena e outra mulher carrega uma mala grande
Bruna Barros/Folhapress

Cogitaram ir para Nova York ou o Rio. Escolheram o Brasil porque, bem no dia da proclamação da República, em novembro de 1889, o peripatético Luigi estava aqui. Em comemoração, as autoridades lhe concederam a cidadania brasileira. (Fosse outro o seu destino, alguém parecido comigo publicaria essa crônica no New York Times de hoje).

Deram-se mal, os Conti. O dinheiro que trouxeram logo acabou. Meu avô Marino foi menino de rua: vendia bilhetes de loteria na avenida Rio Branco. Economizaram, se aprumaram e mudaram para Santos, onde montaram um armazém de secos e molhados.

Luigi morreu e Marino prosperou. Subiu a serra do Mar e criou uma firma de exportação e importação. Vendia café para a Itália e importava coisas de lá. Atilado, fundou um banco. Foi passear na Calábria e arrumou uma noiva, Rosinna.

Construiu um palacete de quase um quarteirão na avenida Angélica. Tinha camarote no Municipal e escritório na rua São Bento, ia ao Fasano e mandava meu pai à escola num carrão importado de último tipo, guiado pelo chofer de botas pretas, boné cinza e luvas brancas.

Aí veio a crise de 1929 e Marino perdeu tudo, tudo. Teve de morar num sobradinho, no Paraíso. Ali perto, na praça Oswaldo Cruz, em cima da Farmácia Paraíso —que existe até hoje— morava minha mãe, seus pais e oito irmãos.

O patriarca do clã, meu bisavô materno, se chamava François Marquis, sobrenome que é em si um título de nobreza. Mas era um francês de segunda linha, “pied noir”no Marrocos. Também ele era um homem do mar: fazia contrabando entre o norte da África e o sul da Europa.

François teve problemas —nunca especificados— com a polícia. Escafedeu-se de Casablanca para São Paulo e aportuguesou o sobrenome para “Marques”. Manteve um pé na marginalidade, tornando-se farmacêutico e curandeiro.

Percorria o interior paulista com um baú de beberagens. Sentava praça na barbearia de vilarejos e um de seus filhos distribuía panfletos anunciando a presença do “famoso Dr. François”. Então vendia suas poções. Safo, partia da aldeia antes que (não) fizessem efeito.

Casou-se com uma moça de origem lusa, Maria, dos Ribeiro lá de Amparo, e tiveram seis filhos. Um belo dia François se mandou. Teria ido para o Paraná e formado uma nova família —e batizado a nova ninhada com os mesmos prenomes da filharada paulista.

Marino Conti só pôde realizar a primeira parte do sonho imigrante de criar os filhos e ter casa própria. Viúvo e sem ter onde cair morto, acabou morando em casa. Tinha um bigodaço, adorava melancia e ouvia óperas de Verdi.

Quando não gostava de um tenor, dizia: “esse abre demais a boca”. Depois do jantar, se recostava no sofá acendia o charuto e me contava casos em italiano. Chorei quando morreu —mais por ter sido mandado para a casa de um tio do que por entender que nunca mais o veria. Tinha cinco anos.

A nova geração dos Marques Conti deu entrada agora com os papeis para obter a nacionalidade italiana. Luisa, veterinária; Carol, cineasta; André, editor; e Lina, estudante de ciências e filosofia em Bolonha, sabem que o maremoto que vem aí pegará o Brasil, e não San Lucido. Querem ter para onde ir.

Já eu fico por aqui, encalacrado, fazendo parábolas e paródias: O meu pai era paulista / meu avô italiano / o meu bisavô francês, meu tataravô não sei / vou na estrada há muitos anos / sou um jornalista brasileiro.

Erramos: o texto foi alterado

Massimo Ferrari não é calabrês; o restaurateur nasceu na região do Piemonte. O texto foi corrigido.

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