Mario Sergio Conti

Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".

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Descrição de chapéu Clarice 100

Condição de brasileira está desligada da dimensão universal de Clarice

A Macabéa da escritora confundia efeméride com efemérica e efemírede

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Macabéa, a heroína do último romance de Clarice Lispector, “A Hora da Estrela”, é datilógrafa, profissão que nem existe mais. Raimundo, seu chefe, a manda copiar a palavra “efeméride”, pela qual ela se apaixona sem saber o seu significado. Confunde-a com “efemérica” e “efemírede”.

Chegou a efeméride redonda do centenário da escritora, mas a confusão continua: a autora nacional mais conhecida no exterior é enaltecida como mulher e judia. A condição de brasileira está desligada da dimensão universal da sua obra.

A confusão não é nova nem nacional. Ocorre o mesmo com Machado e Borges. Para brasileiros e argentinos, seus livros são nacionais, só podem ser usufruídos plenamente quando se sabe o que eram, e são, as nossas sociedades. Explicam a —e são explicados pela— nossa história.

Nos países centrais, tal dimensão é um pano de fundo difuso. Borges e Machado são tidos ali como fabuladores genéricos, mestres de um universalismo auferido em autores do cânone europeu, que ambos subverteram: o mundo é, antes de tudo, texto.

Ilustração de mulher com cabelos curtos alaranjados, descalça e vestindo um maiô amarelo sentada em uma cadeira em uma praia. Ela está acendendo seu cigarro com uma mão, segurando um copo na outra mão e tem uma máquina de escrever no colo. Há papeis voando em direção ao mar e bananas e uma jarra de bebida com rodelas de fruta ao lado dela.
Bruna Barros

Mas foram os brasileiros que descobriram Clarice Lispector. Seu primeiro romance, “Perto do Coração Selvagem”, foi saudado como um evento pelos críticos de então. Mesmo com a autora sendo uma desconhecida total (Sergio Milliet pensou que seu nome era pseudônimo), a força de seu texto se impôs.

É uma força estranha à literatura nacional. Sem alarde, o romance recusa o modernismo de 22, regionalismos pitorescos, iras do realismo socialista, efusões de católicos cheios de culpa. O romance dá as costas ao Brasil. Não o busca nem explica: a nação é nada.

“Perto do Coração Selvagem” toma outro rumo, o de circular em torno da alma de Joana, a protagonista. Não há propriamente enredo, um acúmulo de acontecimentos que provoque mudanças. A substância do livro é feita de hiatos e elipses —não há efemérides nem efemíricas e efemíredes.

O alheamento de Joana é tão puro que provoca desalienação. Ele desaliena o brasileiro exilado na sua própria terra, a leitora presa dentro de si e que não se reconhece na nação. Clarice Lispector não precisa ir a Maracangalha para revelar o Brasil. Mostra que ele está dentro de nós.

O romance termina com uma frase que se estende por uma página e tem pontuação esdrúxula. É um repto de Joana, que se encerra assim: “nada impedirá meu caminho até a morte-sem-medo, de qualquer luta ou descanso me levantarei bela e forte como um cavalo novo”.

Na frase, a audácia da intenção não encontra correspondência na sua realização. Ela é grandiloquente demais, às vezes palavrosa, tangencia o mau gosto. A mesma incongruência entre ambição e prática se repete em “A Paixão Segundo G.H.”, seu romance de maior impacto.

Entre “vagalhões de mudez”, o romance é um solilóquio tortuoso de G.H., a mulher em busca de si mesma. Ainda que sua digressão subjetiva dê o tom, a matéria brasileira está lá, de maneira indireta: é uma ausência.

Ela é uma “sami-artista” que faz esculturas e mora num apartamento de “semi-luxo”. Torna-se plena, deixa de ser “semi”, ao comer uma barata de inspiração kafkiana —o que ocorre no quarto da empregada, a negra Janair, que nunca aparece.

A transcendência espiritual e os devaneios metafísicos da artista diletante só são possíveis porque, no Brasil físico e desumano, a Janair que “odeia” G.H. é um burro de carga.

A coisa brasileira vem a ocupar o centro da arte de Clarice Lispector em “A Hora da Estrela”. Silviano Santiago considerou o romance uma “alta traição” à arte anterior da escritora —e também uma “gargalhada na cara” da tradição literária nacional, aquela chegada à “ingenuidade naturalista”.

O nome da alagoana Macabéa remete à revolta dos macabeus da Bíblia. O seu namoradinho comenta que o nome lembra “doença de pele” e logo o abrevia: Maca, “vê se te manca!”.

Quando ela lhe pergunta o nome, ele alude à Grécia e à Bíblia, mas é brasileiro até a raiz dos cabelos: “Olímpico de Jesus Moreira Chaves, mentiu ele porque tinha como sobrenome apenas o de Jesus, sobrenome dos que não tem pai”. Seu padrasto “lhe ensinara o modo fino de tratar pessoas e lhe ensinara como pegar mulher”.

Macabéa não é apenas brasileira. Depois de confundir com a palavra efeméride, ela vê o livro “Humilhados e Ofendidos”, de Dostoiévski: “Ficou pensativa. Talvez tivesse pela primeira vez se definido numa classe social”. É uma brasileira, mas determinada pelo mundo, e morre atropelada por uma máquina estrangeira.

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