Mario Sergio Conti

Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".

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Presentes para o Natal nefasto: crianças maníacas e uma serpente satânica

A arte alivia o torpor de viver num Brasil que apodrece dia a dia

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O Natal deste ano nefasto comemora não um nascimento, mas a morte. A morte infame provocada pela indiferença com o sofrimento alheio. A morte de uma ideia de nação. A morte causada pela conciliação com aquele que mata —e 185 mil já morreram.

Outros mais morrerão. Basta que os autoproclamados líderes políticos continuem inertes. Basta aderir ao coro hipócrita dos que xingam a Besta mas não agem contra ela, e assim acham que atenuam sua conivência com o mal.

Resta então o refúgio da literatura. A arte alivia o torpor de viver num Brasil que apodrece dia a dia. Dê livros de presente, pois. Escapismo? Sem dúvida e sem problema: desde que transcendam o presente torpe, livros ao menos servem de alumbramento.

É o caso de dois lançamentos que buscam o distante e o remoto. Por vias tortuosas, porém, dizem um pouco do presente. Os três não têm nada a ver entre si, exceto terem sido escritos por franceses, o prosador Michel Schwob e o poeta Paul Valéry.

“A Cruzada das Crianças” (editora 34, 70 págs.), de Schwob, fala de um tempo pior que o nosso, o século 13, quando a Europa foi acometida de um delírio religioso mortífero. Reis e papas, camponeses e nobres, e fanáticos vários, cismaram em tomar o Santo Sepulcro dos muçulmanos: as Cruzadas.

O surto durou 200 anos e terminou em derrota. Seu ápice se deu em 1212, num dos episódios mais estranhos da Idade Média. Não se sabe quase nada do que se passou, e o pouco que se sabe é patético.

Duas colunas de crianças, uma da Alemanha e outra da França, quiseram atravessar o Mediterrâneo e ir a Jerusalém para resgatar o cadáver de Cristo. A Igreja não soube o que fazer —se abençoava as crianças ou as chamava de hereges. E lá se foi a meninada maníaca.

Interpretação da Cruzada das Crianças, por Gustave Doré, de 1877
Interpretação da Cruzada das Crianças, por Gustave Doré, de 1877 - Reprodução

Vestiam-se de branco, rezavam, cantavam. Não tinham ideia de como cruzariam o mar: Deus daria um jeito. Mas antes disso uma coluna sumiu, não se sabe onde e como. A outra foi capturada por turcos, que venderam as crianças como escravas no Egito. Deus não deu as caras.

Em 1906, Schwob escreveu oito relatos fictícios de personagens que viram ou acompanharam a Cruzada das Crianças. São peregrinos, dois papas, um comerciante, um leproso, crianças.

A polifonia de vozes e a narrativa sublime fizeram de “A Cruzada das Crianças” uma epifania única nas letras francesas. Acresce que a edição brasileira é magnífica. Do prólogo de Borges à tradução de Milton Hatoum e à orelha de Noemi Jaffe, tudo é maravilhoso. É ler para crer.

“Feitiços [Charmes]”, (Iluminuras, 244 págs.), de Paul Valéry, é o oposto da simplicidade etérea d’“A Cruzada das Crianças”. Os poemas são hiperelaborados, ostentam o seu artificialismo, se refastelam em sinédoques, metonímias, enjambements, alusões, aliterações e quejandos —em tudo que faz a delícia dos pedantes.

É a primeira vez que “Charmes” é publicado na íntegra em português, o que é ótimo. Mas Valéry foi um escritor fragmentário, um ás de aforismos e paradoxos que se bastam em si mesmos. Ele é melhor nas partes —nos “Cahiers”, sobretudo— que no conjunto, todo ele desconjuntado.

“Charmes” traz dois dos seus grandes poemas, “Esboço de uma Serpente” e “Cemitério Marinho”. (Parêntese pessoal: fui ao cemitério que inspirou Valéry, em Sète, e onde ele está enterrado: físico, e não metafísico, o campo-santo à beira do Mediterrâneo deslumbra tanto quanto o poema.)

São poesias conhecidas, se bem que nem tanto. De “Cemitério Marinho”, por exemplo, se conhece mais a epígrafe, de Píndaro: “Ó minha alma, não aspire à vida imortal, mas esgota o campo possível”.

Já “Esboço” é mais estudado do que amado. O que, dada sua complexidade, faz sentido.

O poema, ao que parece, é uma espécie de monólogo da serpente, que é associada ao Satã do Éden e ao poder do pensamento. A encarnação do mal desafia Deus, seduz Eva, maquina, mói a alma e some.

A um só tempo, o poema é a expressão de uma revolta e a possibilidade de que essa mesma revolta se perca e não chegue a nada, exceto ao próprio pensamento: a serpente morde a própria cauda e, nos últimos versos, o poeta “exalta a estranha onipotência do Nada”.

A edição da Iluminuras, traduzida por Roberto Zular e Álvaro Faleiros, tem a enorme utilidade de ser bilíngue. Mas se assinale que eles se afastam da literalidade desde o título: “Esboço de uma Serpente” vira “Esboço de Serpente”. E ainda assim a tradução de Augusto de Campos, fiel à letra do poema sem ser literal, é mais criativa.

Um bom Natal, apesar dos pesares.

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